Barbaros na Mesa de Jantar: Mestrando para
Crianças
Uma
das experiências recentes mais ricas que tenho tido é a de fazer mesas com
crianças e pré-adolescentes. É rica pela
quantidade de aprendizagem e desafios que a tarefa representa, e, ainda que não
seja uma tarefa à altura dos 12 Trabalhos de Héracles, bem, também nem tudo são
rosas e mamão com açúcar.
Antes
de tudo temos a questão da faixa etária. Ainda que várias brincadeiras ligadas
a narrativa e imaginação, jogos de mesa e RPGs de computador variados sejam adequados
para faixas etárias menores (nem todos os jogos, diga-se), um jogo de RPG só é
realmente funcional com idades a partir (na média) dos sete anos, quando a
criança entra no período das operações concretas (período descoberto e descrito
por Jean Piaget). Esta fase, que vai até os onze ou doze anos (novamente, em
média) traz em si alguns avanços bastante interessantes em termos de cognição,
e é possível se observar, de modo bastante prático, o processo de
desenvolvimento em cada criança, mesmo que, no caso, só a título de
curiosidade.
O período
anterior, chamado de “Pré-Operatório” que costuma ocorrer entre os 2 e os 7
anos, se destaca por características como Domínio da Linguagem, possibilidade de
obediência a partir da moral de adultos (que ainda definem largamente o que é certo e errado em cada situação), domínio
da linguagem e brincadeiras ainda muito individualizadas, ou seja, uma maior
dificuldade em se colocar no lugar do outro.
Nenhuma dessas características é fixa e se modifica,
magicamente, aos sete anos. É um processo onde gradualmente estas capacidades
vão se fixando, e mesmo aprendizagens e potencialidades de fases posteriores podem
aparecer, dependendo de questões biológicas, psicológicas e de possibilidade ambiental,
mas são movimentos que dependem enormemente da criança e de suas condições, de
qualquer modo.
Fora
isso, até essa idade, a maior parte das crianças pequenas ainda está passando
por um processo de alfabetização, familiaridade com os números e seus
significados, e ainda requerem grande esforço em desprender a realidade
imediata e real da emocional.
Novamente,
isso depende de cada criança, mas na média não é incorreto dizer que a imensa
maioria das crianças, até a idade de 7 ou 8 anos, não irá conseguir aproveitar
uma mesa de RPG como crianças e adolescentes maiores.
Já
na idade que aqui nos interessa, a fase ou período das abstrações Concretas,
traz consigo uma série de capacidades que a criança já pode utilizar em uma
mesa de RPG, ainda que alguns cuidados precisem ser pontuados.
Este
período traz consigo, por exemplo, as habilidades iniciais da capacidade de se
utilizar lógica, de entender de modo mais complexo as relações de causa e
efeito, bem como de entender de modo mais aprofundado determinados paradoxos
entre uma fala e outra.
Por
exemplo, uma criança menor pode ter maiores dificuldades em compreender que um
cavaleiro usando uma armadura de ferro terá sérios problemas para nadar em um
rio, enquanto crianças a partir do período das operações concretas já o podem
fazer espontaneamente em muitos dos casos.
Por
ser o RPG um jogo que simula, ainda que
com diferentes graus de precisão, a realidade, e aberto a interpretações, a
criança que consegue pensar e antever algumas de suas ações tenderá a
aproveitar melhor os momentos lúdicos neste tipo de atividade.
As
operações matemáticas, muitas vezes necessárias para se pensar as chances de
risco de sucesso ou fracasso em uma ação são outro fator que vai sendo melhor
desenvolvido nessa idade. Se um jogador sabe, de modo mais internalizado, que
as chances de conseguir 19 ou 20 em um dado de vinte lados, sendo este o númerov necessário para acertar um inimigo
descrito como distante, poderá, por exemplo, rever sua estratégia, tentando
descrever uma fase de “aproximação” de seu personagem, escolhendo outro alvo
mais fácil, etc.
Isso
evita tanto a frustração de ver uma ação fracassar, como diminui um possível
atrito com o mestre com uma daquelas frases do tipo “Você está roubando” ou “Ah,
mas fazer isso é impossível” (quando não é, é apensas muito, muito difícil, mas
as vezes vale a pena o risco).
A
capacidade de memorizar fatos históricos e geográficos é outra habilidade em
desenvolvimento útil aqui. Seja na memorização de um mapa de uma masmorra, seja
no recordar de um ponto qualquer descrito em uma descrição do Mestre do Jogo.
Essa capacidade de memorização, associada a uma capacidade lógica mais
eficiente permite que jogadores-mirins possam resolver problemas lógicos com
alguma eficiência.
Por
exemplo: Em uma aventura que fiz com meus jogadores, distribui para eles uma
folha com o alfabeto grego, mais pela curiosidade do que pela utilidade então.
Algumas mesas depois, usando outro conjunto de regras e ambientação, resolvi
propor um enigma, onde letras gregas formavam uma palavra (em português) para a
abertura de uma porta mágica. Eles precisavam apertar as letras na sequência
adequada. Além de reconhecerem as letras e buscarem em suas pastas o “dicionário”
de letras gregas, com algumas tentativas
e erros descobriram a sequencia correta (a palavra “ABRIR”) mesmo com alguma
dificuldade em fazer um paralelo imediato do nosso alfabeto com o grego. Como
resultado, abriram a tal porta e receberam uma recompensa, na forma de armas
poderosas e dinheiro.
Este
tipo de capacidade não seria possível com as mesmas crianças uns dois anos
atrás. Simplesmente porque elas, agora com idades entre 8 e 9 anos, ainda não
tinham atingido desenvolvimento cognitivo suficiente para a “luzinha” aparecer
sobre suas cabeças e fornecendo um insight que fornecesse a resposta correta
para o enigma.
A “Auto-análise”,
que é a capacidade de aprender com os próprios erros, fornece outra facilidade
enorme que possibilita a “mestragem” para estas idades. Afinal, se ele ou
alguém do grupo, comete um erro em uma aventura, deixar de insistir em erros
similares poupa uma série de consequências negativas para a criança.
Em
termos emocionais, ainda que seja objeto a ser visto de caso em caso, a
capacidade de frustração na eventual “morte” de um personagem faz com que a
mesa possa ser um pouco mais elaborada (e difícil), permitindo desafios como
armadilhas e combates que tragam maior satisfação ao serem (em geral)
resolvidos, o que aumenta o prazer tanto para quem mestra, quanto para quem
joga.
Há
ainda um fator de planejamento de ações, entendimento das necessidades de
outros jogadores e seus pontos de vista, que favorecem enormemente jogos de
cooperação mútua, como é o caso do RPG.
Afinal, quando um jogador entende que ele PRECISA que um outro personagem fique
mais poderoso nesta ou naquela habilidade, para poder, inclusive, cuidar melhor
do personagem dele, isso faz com que estratégias e ações conjuntas, de
benefício mútuo, possam ser elaboradas.
Um
fator complicador na idade é a maior tendência a certo sexismo. Uma vez
que o RPG, ainda, é jogado por uma
maioria da população do sexo masculino, é preciso algum esforço por parte do
mestre para balancear uma mesa que tenha, por exemplo, uma garota (tenho duas
meninas e dois meninos jogando comigo atualmente, e não tenho problemas, mas o
risco potencial existe).
Uma criança
nesta idade ainda não consegue mestrar. Isso porque sua capacidade narrativa
ainda requer maiores refinamentos, e é complicado coordenar não apenas uma
história, mas interpretar e codificar
significados descritos em termos de números-alvo de dificuldades, improvisar
narrativas paralelas quando os jogadores fazem algo inesperado, e compreender e
reagir de forma mais equilibrada a conflitos em uma mesa, seja entre jogadores,
seja deles para com o mestre.
O
que Mestrar?
Antes
de tudo, leve em consideração a faixa etária dos jogadores em potencial bem
como seus gostos e referenciais culturais. Na minha infância, Ciborgue, o Homem
de Seis Milhões de Dólares, estava, como se diz hoje em dia “bombando”. Mas
para crianças atuais, desenhos como Pokemon, Cavaleioros do Zodiaco (sim,
ainda), Bem 10 e afins podem ser mais atraentes em termios de história. Uma
dica é conversar com o grupinho antes e saber que tipo de coisa eles gostam de
assistir na TV, ou mesmo, em alguns casos, em termos de cinema, quadrinhos ou
música.
Em
geral, aventuras medievais do tipo Senhor dos Anéis ou espaciais do tipo “Jedis”
são as mais conhecidas e aventuras que permitam a criança identificar estes cenários
facilitam a vida. Note que o mestre não precisa usar estes cenários em si, mas nas
descrições pode perfeitamente usar alguns destes elementos (de novo, se as
crianças conhecerem) como forma de enriquecer uma narrativa.
Ao
narrar, use exetencivamente material gráfico, como imagens de personagens, de
prédios ou castelos, mapas, etc. Este tipo de recurso pode ser fundamental para
o jogador entender ao que se refere exatamente quando, por exemplo, fala de um
beholder.
Em
termos de tempo, minha sugestão é a de que as mesas não ultrapassem as duas
horas de atividade. Manter a concentração por um período maior que este pode
ser impossível, já que esta fase, cheia de energia, precisa muitas vezes de
inúmeros “levantar e correr!” ou demonstrações de como um monstro morre sendo
descritas via mimica e em pé, com direito a saltos no chão, etc.
Há
dois tipos de formatos que em geral são recomendados para crianças:
O
primeiro são jogos extremamente abertos , como o excelente “CAT” de John Wick,
ou jogos como “Santiago Joe” que dispensa o uso de dados e usa apenas a
narrativa como elemento condutor. São recomendados para crianças sob uma
premissa bem-intencionada, mas errônea, baseada na imaginação fértil infantil
Sim,
crianças são criaturas imaginativas. Mas esta plasticidade narrativa tem um
preço: Além de serem extremamente randômicas, pulando e acrescentando dados que
nem sempre combinam (como alienígenas, Pokemon e Cavaleiros do Zodiaco na mesma
frase), são cansativas, pois requerem da criança uma constância na imaginação
que requer enorme esforço e memorização.
A
manutenção de toda essa imaginação gasta enorme energia mental ou seja, e pode
cansar quando, ao mesmo tempo, esta fertilidade de fantasia precisa fazer
florescer frutos da imaginação aproveitáveis e “amarrados”. Em uma mesa com três
ou quatro crianças, cada qual querendo trazer sua fala e imaginação, isso é uma
receita para o desastre, ou, no caso,
uma mesa ruim e desgastante para todos.
Prefiro
ir na contramão neste sentido. E a minha sugestão é a de que se dê aos
jogadores uma ambientação mais estruturada inicial. Uma masmorra, neste
sentiodo, é perfeita. Concreta, com escolhas simples (abrir ou não abrir uma
porta, seguir por este ou aquele lado, lutar ou fugir, etc), que não deixam de
fazer a imaginação e a criatividade serem exploradas, mas ao mesmo tempo são
estruturantes, e quando o jogador cansa de imaginar pode ter um tempinho de
refresco mental e simplesmente se deixar levar por um sólido corredor
imaginário.
Crianças
são, enfim, jogadores selvagens, no melhor sentido, que costumam retirar enorme
prazer da atividade de um jogo como o RPG, ainda que diversos cuidados sejam
necessários. Um deles é o de jogar em um local onde outros adultos possam “supervisionar”
a atividade. Este cuidado tem a ver com um desconhecimento quase absoluto do
que é o RPG em nossa sociedade e, ainda que não tenha conhecido, em mais de 20
anos de jogo, um outro RPGista que fosse meu amigo e em quem não confiaria meus
filhos, nem todo mundo pensa assim, então para não correr o risco de mal-entendidos, faça a atividade
em local tão publico como possível. Tenha cuidado com o tipo de aventura a ser
escolhido (evite aventuras violentas demais, ou com temáticas inapropriadas para
a idade, evite falar palavrão, etc. São coisas meio obvias, mas que precisam
ser ditas ao menos uma vez em algum lugar.
Resumo:
-Descubra os referencias das crianças antes de fazer a
aventura, e construa a história a partir de referencias que eles compreendam.
-Evite mestrar para crianças de 7 anos ou menos. Em geral
eles ainda não irão aproveitar de modo mais eficiente o jogo e pode ser
frustrante ou traumático.
-Dê preferência a jogos com regras e estruturas de
ambientação bem estruturadas. Isso permite que a criança-jogadora aproveite a
diversão sem se cansar demais e querer encurtar a atividade. Old Dragon, por
exemplo, com regras simplificadas, é uma boa escolha.
-Tenda a ser mais breve nas mesas do que seria com jogadores
mais velhos. Jogos de 2 horas, em minha experiência, costumam ser mais eficazes
e menos cansativos, e aumente, gradualmente mais lentamente, este período, se e
quando necessário (ou diminua, quando for o caso).
-Tenha a mão um bom numero de imagens para a ventura, mas
também reservas. Algumas vezes pode ser necessário. Recursos como tablets e
computadores portáteis são uma mão na roda nessas horas.
("psicografado" do além do aquém por Brega Presley)
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