sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Os Limites do Trabalho com Crianças


Esse é um tema complicado. Até achei que já havia escrito sobre isso um tempo atrás, mas não achei, então possivelmente nunca escrevi, mesmo.

Vamos lá:

Tenho acompanhado (muito feliz) o surgimento de diversos trabalhos em escolas e ONGs utilizando jogos como ferramenta.

Como qualquer boa ferramenta, os jogos podem ser usados para diferentes fins. Defino aqui três grandes grupos:

1) Terapêutica: Áreas da ciência, sobretudo da psicologia, são vastos campos de análise e uso dos jogos e brincadeiras como forma de acessar e trabalhar a psicodinâmica infantil. Desde Melanie Klein, atividades como a "Caixa de jogos", onde figuras presentes e brinquedos permitem um "dialogo" entre  o terapeuta e as crianças e pré-adolescentes atendidos através do simbólico das brincadeiras.

Outra forma de trabalho, nesse sentido, é a de Terapia Ocupacional, onde a atividade, em si, traz ganhos aos pacientes, como ajudar a memorização, trabalho de empatia, memorização, etc. (neste último conheço pouco, peço desculpas  se falei uma abobrinha cavalar).

2) Pedagógica: São os jogos (RPG, Boardgame, Cardgame, etc) uma forma diferente de levar  os alunos a pensarem uma temática. Lembro de um jogo de "War" que um professor de geografia fez com minha classe que foi perfeito para entendermos a geopolítica militar em algumas atitudes de gerenciamento de produução de bens. A aula rendeu bons debates e alguma coisa ainda me lembro mesmo mais de 20 anos depois.

Professores de redação, matemática, mas sobretudo de história, costumam ter excelentes trabalhos de campo nesse sentido.

3) Socializador: É o jogo pelo jogo. Alguns jogos "pedagógicos" erram exatamente quando se esquecem que um jogo tem de ser divertido, instigante. E a razão pelas quais as pessoas, sobretudo as crianças, jogam, é para passarem momentos divertidos com outras pessoas. Se um jogo não é divertido, como qualquer brincadeira, cansa e é deixado de lado.

Mas mesmo se não tiver, em si, uma das duas outras funções acima citadas, o Jogar é uma experiência única, quer seja competitivo, quer seja cooperativo, porque tem um desafio, um mundo com regras específicas que precisam ser seguidas para garantir a diversão e fortalecer vínculos e recursos internos. E isso, por si só, já é terapêutico e pedagógico.

O QUE ME LEVA a seguinte questão:

Quando forem utilizar jogos com alguma função, tenham em mente QUAL desses objetivos acima é o seu. Escolha um, vai por mim, não tente abraçar  o mundo.

Vou me dar como exemplo:
Tenho uma oficina em um colégio aqui na tijuca. Meu publico alvo são crianças e adolescentes, a maioria de classe média (não somente) dentro de uma instituição de ensino.

Minha formação em psicologia passou por psicanálise infantil, já fiz quilos de trabalhos em educação Sexual com adolescentes,  e tenho alguma base para analisar/ interpretar escolhas e projeções que ocorram em uma mesa de jogo.

E eu NÃO FAÇO ISSO.

Quando não estou em um consultório ou ambulatório, ou seja, quando não estou atuando como psicólogo, não tenho o direito de ficar conjecturando sobre atos falhos e conteúdos indiciários alheios. Primeiro, porque, para se fazer isso, o ideal são uma série de pré-requisitos técnicos que me permitam fazer isso direito: Entrevista inicial, setting, , etc.

Segundo, porque fora de um consultório não é o que me é pedido pelo outro. Se estou em uma mesa de bar, um amigo não vai querer que eu diga que ele está namorando fulana "por que ela lhe lembra uma figura maternal", por exemplo. Não à toa, usa-se a expressão "psicologia (ou psicanálise) de Boteco" para este tipo de interpretação.

Para se realizar um trabalho envolvendo os discursos envolvidos por jogadores, com uma função terapêutica, é preciso uma formação adequada - para não cairmos na analise superficial e potencialmente errônea e prejudicial - do "alvo" da interpretação. E familiares ou analisados necessitam estar cientes e concordar com isso.

Então, ANTES de começar um trabalho assim, defina quais são seus objetivos.

-Se for LUDICO, faça isso bem-feito. Em uma sociedade com tremendas carências, o simples ato de se sentar algumas horas e se JOGAR com uma criança faz uma diferença tremenda. Então se seu objetivo for o de fazer isso, faça EXATAMENTE isso. Jogos qu sejam interessantes, que tragam outras forms de se construir idéias, estratégias, interações, são algo que estimulam e ajudam quem joga a aprender recursos internos poderosos. Mas para isso elaas tem de se sentir à vontade com o jogar.

-Se for TERAPÊUTICO, faça isso somente com a formação adequada. Por melhores que sejam as intenções, há uma formação necessária para não se fazer besteira. E isso não é uma postura de "defesa de nicho". Até, porque já vi psicologos fazendo intervenções "terapêuticas" que foram extremamente danosas. Mas porque lidar com o emocional de outras pessoas requer uma enorme energia e cuidado, e isso só a formação acadêmica te traz. Não é simples "bom-senso". Psicologia, por exemplo, é uma ciência e tem suas razões práticas e teóricas para tanto.

-Se for PEDAGÓGICO, antes de iniciar  o trabalho tenha uma planilha ou roteiro do que será ensinado, quais pontos a mesa pode ou precisa abordar para que a informação seja transmitida, como transformar isso em um desafio, e se um jogo tem uma função no ensino de fato ou é, só perfumaria (algumas vezes pode ser fundamental, mas nem sempre será a melhor escolha). Faça o jogo ter um significado, uma razão de ser, que atribua interesse ao tema escolhido.

Em resumo, cada linha de trabalho utilizando jogos tem uma função específica.
Mantenham o foco naquilo que o trabalho exige. Façam valer a confiança que as crianças e adolescentes tem em vocês ao se disporem a aceitar as suas regras e "jogar o seu jogo".

Exceto em casos de suspeita de abuso infantil, o que é algo que profissões como psicologia, medicina e odontologia DEVEM noticiar para órgãos públicos, a maior parte das coisas que eles digam ou falem devem ficar nas mesas, quando muito pessoais. Como regra geral, evitem interpretar os jogadores. a gente interpreta personagens em jogos, e é isso que fazemos bem.

É diferente você dizer "um aluno resolveu usar o anão do grupo como ariete e isso fez a aula ser engraçada" de "Fulano está demonstrando certa agressividade na interação com os colegas", o que pode se ruma analise precipitada e dar direcionamentos muitas vezes errados para aquele aluno em específico.

Algumas interpretações quando erradas ou muito parciais, podem comprometer ou limitar a visão de outros profissionais ou familiares sobre a criança, que muitas vezes é um MUNDO de possibilidades, e não somente o "Bárbaro Anabolizado" de uma aventura.

Sabem a velha máxima "O que acontece em Las Vegas, fica em Las Vegas"? pensem um pouco assim ao trabalhar ludicamente com essa faixa etária. Quando for para falar das aventuras, em si, acho isso bem legal, mas atenção ao particularizar jogadores.

Ps: Isso me leva a outro ponto, destacado pela Rafaela, uma amiga, ao ler o texto:
Abuso Sexual e Suicídio são dois temas raríssimos de serem identificados em uma mesa. Infelizmente, não são impossíveis de acontecer,  e pode ser que surjam indícios em sua atividade.

Se acontecer, antes de tudo  respire fundo. Depois, se achar que existe de fato algum risco à saúde do aluno envolvido, converse com a coordenação da instituição em que faça a atividade (diretor da escola, coordenador do projeto, etc.). Explique o que te fez suspeitar e deixe que autoridades competentes (como os conselhos tutelares) cuidem do caso.
Este tipo de diagnóstico não é simples e precisa ser feito com muita cautela.
Mas se for o caso, precisa ser feito.

Boa  parte das ONGs e instituições de ensino tem regras já definidas sobre como atuar em casos assim. Descubra quais são e siga-as, se possível.

Algumas sugestões extras:
-Sempre que possível, jogue com as portas abertas. Ou, pelo menos, destrancadas.

-Converse com demais profissionais e adultos antes de começar o trabalho e fale sobre o que as mesas trataram, sempre que possível. Não sobre os jogadores, mas sobre o que a temática foi. Isso evita algumas interpretações errada sobre o
hobbie, sobretudo em RPG.

-Esteja pronto para improvisar. O que achamos que os alunos vão querer e o que eles vão querer de fato, são coisas que raramente coincidem.

-Atenção na linguagem e as metáforas para a realidade dos alunos. Se for falar de um mundo de fantasia, cite "Hobbit" ou "Harry Potter", por exemplo. Ou o que quer que seus alunos assistam, ouçam ou joguem.

-NUNCA marque uma mesa fora da instituição, exceto se com pleno conhecimento e consentimento dos pais. E mesmo nesses casos, em um lugar publico, como uma lanchonete ou livraria (e somente em casos de necessidade).

-Anote o que for sendo jogado. É um bom hábito (que não tenho) e ajuda muito a saber  o que j´pa foi feito e ainda pode  ser realizado.

Um comentário:

  1. Ps: Ao me referir sobre o que deve ficar em uma mesa, digo no quesito de percepções pessoias. Se um aluno parece estar deprimido, por exemplo exceto em casos realmente extremos, isso não é algo a se ficar comentado.

    Falar sobre as mesas em si, que tipo de aventura foi narrada, que soluções os jogadores bolaram, etc, quanto a isso, não vejo problema algum.

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