quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Resenha de Trail of Cthulhu - 2ª Parte

Continuando a resenha como prometido, vamos dar uma olhada em como funciona o sistema Gumshoe.

Pistas, Testes e Disputas

Este capítulo trata do sistema de jogo, e explica em pormenores como funciona o Gumshoe. Inicialmente, o autor explica como funcionam o sistemas de pistas e Investigative Abilities.

O GUMSHOE tem um foco muito específico, que é facilitar campanhas que sejam voltadas para investigações, com ênfase na interpretação das pistas. Como fã de Sherlock Holmes, é tudo o que eu sempre quis de um RPG.

Para entender o foco do sistema, temos que partir de uma premissa básica, que as vezes, por incrível que pareça, é esquecida: os jogadores estão na mesa de RPG para se divertir.

Uma coisa que Robin Laws percebeu é que em algumas aventuras, uma pista é essencial para o desenrolar do plot. Mas quando você tem que rolar para encontrar a pista, você corre o risco de não encontrá-la. Se você não encontrá-la, a aventura "pára". Repare que a aventura "parar" é diferente de simplesmente haver consequências por um mal rolamento, por exemplo:

  • Se você rola mal no combate, o PC é ferido ou erra o golpe. É uma consequência ruim, mas a estória anda. O PC pode acabar vivendo, ou morrendo, mas o processo de isso ocorrendo é divertido.
  • Se vc não encontra a armadilha, a armadilha dispara e vc toma dano. Isso não pára a aventura. É uma conseqüência ruim, mas a estória anda. O PC pode acabar sobrevivendo, ou morrendo, mas o processo de isso ocorrendo é divertido.
  • Se você tenta salvar a criança, mas o ghoul chega antes, é uma consequência ruim, mas a aventura anda, a estória anda. O foco agora é salvar a criança. Ou vingar a criança. Ou o que seja. Isso ocorrendo é divertido.

Mas, se você rola mal e não acha a pista necessária para desvendar a investigação, a aventura "pára". Ficam os JOGADORES e não as PERSONAGENS, olhando uns para a cara dos outros, sem saber o que fazer. Por causa de um rolamento ruim. Esse rolamento, então, só existe para atrapalhar o andamento do jogo. Se ele é bem sucedido, o jogo não ganha nada com isso, apenas anda, se é mal sucedido, tudo "pára".

A aventura parar é pior do que todo mundo morrer, pois se todo mundo morrer os jogadores vão para casa, ou tomam um chopp, ou começam de novo... Se a aventura “pára” fica todo mundo olhando um para a cara do outro sem saber o que fazer. “Parar” não é divertido, porque é um beco sem saída, e a única forma possível de resolver isso (rolar bem) já não é mais uma opção.

Isso é grave, porque quando o rolamento falha, a única saída possível nos sistemas tradicionais é a intervenção do mestre. O mestre pode mudar a estória e fazer aparecer outra pista, pode quebrar as regras e permitir outro rolamento (e rezar para que esse dê certo), pode quebrar as regras e dar a pista de qualquer jeito, etc... Se o mestre é inexperiente ele não tem tanto jogo de cintura, ele não tem essa opção. Ou se o mestre é caxias, e não gosta de quebrar as regras, e/ou não tem a capacidade de perceber o problema, a coisa não se resolve.

Há quem diga que isso é problema de design de aventura, e não de sistema. Porém, a coisa não é bem assim. Nem todos os mestres são experientes, ou, francamente, bons. Então há mestres que dificultam a níveis absurdos encontrar as pistas (pixelbitching), ou simplesmente não atentam para esse detalhe. Além disso, para uns nerds, como eu, o sistema fica deselegante e feio. E para uns outros preguiçosos, como eu, é trabalho desnecessário para o mestre.

E, diga-se, que em termos de como o cenário é compreendido pelas personagens, não existe nenhuma razão para que o detalhe que permite desvendar o mistério não dependa de uma habilidade específica da personagem principal. E mais, no gênero investigativo, essa é a regra.

Há quem diga, ainda, que as aventuras modernas não têm esse problema. Bom, mas há quem queira jogar as antigas, e além disso, ainda hoje há autores que bolam aventuras assim. Não faz muito tempo, baixei uma aventura oficial da Chaosium que, pela leitura rápida que dei, tem esse problema duas vezes seguidas!

A ideia é que isso decorre do fato de tradicionalmente os sistemas considerarem achar uma pista igual a achar uma armadilha, ou seja, um simples teste de percepção ou alguma perícia. Porém, como dito acima, as consequências são diferentes para esses dois tipos de rolamento, e é interessante que haja regras diferentes para resolver cada problema.

Então o que o ToC faz? Grosso modo, para coisas como correr, lutar, achar armadilhas, etc... onde o rolamento traz consequências interessantes tanto quando você falha quanto quando você ganha, você rola como em outros sistemas, podendo gastar pontos para aumentar seu rolamento.

Quando você está procurando pistas, o ToC simplesmente “retira” o rolamento. Se a pista é necessária para desvendar o caso (o que ele chama de Core Clue), o simples fato de vc POSSUIR a Ability e dizer que vai usá-la, faz com que você ache a pista, como nas estórias de detetive. Afinal, Sherlock Holmes, Poirot, etc.. podem interpretar errado uma pista, mas nunca DEIXAM DE ENCONTRÁ-LA, porque isto é uma característica narrativa das estórias de investigação que o sistema emula. Como você não rola, não corre o risco de a aventura parar só por causa de um mal rolamento. A aventura pode parar por outros motivos, que também ocorrem em outros sistemas, mas não pára só por azar do jogador.

E, não se esqueçam o mestre, aquele cara que trabalha, tem filhos, namorada, faculdade, família, e que a gente nunca agradece, apesar de ele perder horas toda semana para nos divertir. Esse cara tem menos trabalho.

Mas se a personagem descobre as pistas apenas pelo fato de ter a Ability necessária, para que colocar mais pontos em uma Ability?

É que além das Core Clues, que a personagem ganha automaticamente, o jogador pode gastar pontos para achar outras pistas, que não são NECESSÁRIAS, mas AJUDAM a desvendar o mistério. Como essas pistas não são necessárias, não há problemas em não gastar os pontos, mas é DIVERTIDO fazê-lo, pois você ganha mais informações sobre o mistério.

É importante salientar isso, porque há quem critique o sistema, pensando que a personagem só ganha a pista se gastar ponto. Não é verdade. Só as pistas secundárias é que precisam de gasto de pontos. E dessas a personagem nem precisa para desvendar o mistério, apesar de que costumam ajudar muito.

Vale lembrar que tem como fazer outras coisas criativas com os pontos, mas também não dá para entrar no mérito, porque isso ia sair muito do ponto (hehehehe). Para quem estiver com preguiça de pensar, um outro box explicativo dá vários exemplos.

Buscas mais simples (como um cadáver no meio da sala) são obviamente percebidas independentemente de a personagem ter alguma Ability. Há vários outros detalhes menores que governam a forma como as pistas são descobertas, que também fogem ao escopo da resenha.

Após o sistema de investigação, o livro passa para o resto do sistema em si, que é governado, além pelo gasto de pontos, pelo rolamento de um único d6. O Keeper estabelece uma dificuldade para o rolamento (que é informada aos jogadores no modo Pulp, e oculta no Purist). Antes de rolar o dado, o jogador pode optar gastar pontos das General Abilities no rolamento, somando ao resultado do dado.

E aí entra outra grande sacada do jogo. Ao longo de uma aventura de CoC, por exemplo, um jogador vai tender a uma média no resultado dos dados, em relação a ser bem sucedido ou não nos rolamentos, de acordo com a probabilidade criada pelo seu nível em determinada característica.

Ao adotar o sistema de gasto de pontos, e isto pode ficar despercebido para alguns, o jogo cria uma outra curva de probabilidade, mas com uma diferença importante: O jogador pode influenciar em quais destes rolamentos ele terá mais chances de ser bem sucedido. É claro que uma hora os pontos acabam, então quem optou por gastar todos os pontos logo de cara, corre o risco de ficar sem nenhum mais tarde, e depender apenas do dado.

Isto criou, em minha experiência de mesa, o efeito de que o jogo, conforme avança, e os pontos são gastos, adquire um clima de tensão maior, porque os jogadores começam a ficar preocupados com o que virá pela frente, sem ter como saber se os pontos que estão gastando serão necessários depois. Para um jogo de terror, este efeito é muito interessante. Recentemente eu vi o filme The Thing, e durante o tempo todo eu pensava: olha esses caras desesperados, presos com o monstro, enquanto os pontos vão acabando e a Stability cai.

Porém, nem tudo são flores. Em jogos online, percebi que o gasto de pontos detrai muito da experiência, pela falta justamente do imediatismo de ver os recursos se acabando.

E muitas pessoas dizem que o uso de pontos retira a imersão do jogo. Acho pessoalmente, porém, que isto é muito subjetivo. Eu não consigo ver porque o gasto de pontos seria menos imersivo do que simplesmente parar e rolar dados. O fato é que, em qualquer RPG, quando a mecânica entra em cena, a imersão diminui um pouco.

O combate segue mais ou menos o mesmo sistema das General Abilities, sem grandes mudanças dignas de nota. A resistência a danos dos personagens funcionam baseados na Ability Health delas, e parece um sistema de hit points. O sistema é razoavelmente mortal, e há opções para torná-lo mais ou menos mortal.

Interessante notar que o sistema é “voltado para a personagem”. A maior parte dos rolamentos é realizada pelo jogador, e não pelo mestre. Por exemplo, em um rolamento para andar sem fazer barulho, o jogador rola sua Ability contra uma dificuldade fixa que é fornecida para cada criatura. Isto diminui o número de rolamentos e agiliza a aventura.

Passando ao sistema de saúde mental, ao contrário do CoC, a mecânica se divide entre Sanity e Stability. A primeira corresponde na crença do investigador em conceitos e ideais que o protegem mentalmente da dura realidade do Mythos, e a segunda corresponde a capacidade de ficar calmo. Na minha opinião isto reflete melhor a obra de Lovecraft, onde feiticeiros e cultistas, que tem Sanity baixa, podem continuar vivendo mais ou menos em sociedade, pois sua Stability é normal.

O capítulo se entende em meios de recuperar e perder Sanity e Stability, de acordo com que tipo de campanha, e como essas características influenciam os Drives e Pillars of Sanity. Há ainda, as regras para o personagem desenvolver patologias mentais e enlouquecer por completo. Há também, algumas dicas de roleplay destas patologias, inclusivo como simulá-las de uma forma “meta-jogo”, por assim dizer.

Termino a segunda parte por aqui, e na próxima quarta vamos entrar na abordagem que o ToC dá ao cenário.

Igor

4 comentários:

  1. Bom dia Leonardo.

    Essas resenhas estão bem legais. Gostaria de saber se eu poderia postar elas no meu blog
    (www.tabernadojao.blogspot.com).

    Grato
    Jão de Aquino

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  2. Você acaba de me deixar ainda mais ansioso para o lançamento dessa obra de arte aqui no Brasil!

    Parabéns pelas duas ótimas resenhas!

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  3. Cara to gostando muito dessa resenha. O lance que você colocou de gastos de pontos é muito importante em vários sistemas, no WOD e NWOD os willpoints,shadowrun, no ruínas a gente colocou "moral" que também funciona como pilha exatamente para jogadas decisivas, principalmente nos casos como você colocou em que o jogo pára, so que nem sempre o mestre repara isso, por isso acho importante que existam as pilhas para que se o player tiver sacado isso ele possa fazer algo a respeito. Parabéns pela resenha cara!

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