Essa matéria é a estreia do nosso colunista Jorge Valpaços e sua coluna mensal Ludocultural. Neste espaço, ele trará sempre uma abordagem sobre conteúdos culturais para jogos em geral, enriquecendo o conhecimento dos leitores do blog sobre o aspecto cultural do universo lúdico, em especial, do RPG.
Uma nota importante é que, sempre que a matéria for dividida em partes, ela será completada durante o mês no qual a primeira parte foi publicada! Espero que curtam, e aguardamos seus comentários!
Buriedwithoutceremony.com, esta é a página da criadora de jogos narrativos Avery Mcdaldno. O nome já chama atenção, afinal, o que foi enterrado sem cerimônia? Mas a curiosidade ao visitar a página da autora aumenta ao notarmos que a meta de design de seus jogos são “jogos significativos”. Ora bolas, o que isto quer dizer afinal?
Antes
de falarmos dos jogos em si ou da biografia de Avery, vamos falar dos
princípios que ela mesma segue ao criar seus jogos de contar histórias. De
acordo com a autora, ela se preocupa em criar jogos significativos e que façam
pensar. Ela busca criar jogos simples e compartilháveis, sendo facilmente
ensinados a outras pessoas. E por que isto? De acordo com Avery, nós agimos e
somos informados pelas histórias. Histórias unem comunidades. Histórias revelam
quem somos. Avery cria seus jogos para mentes abertas, criativas, curiosas, a
autora toca quem joga apaixonadamente, quem se entrega ao jogar e se permite
descobrir, se questionar, ir além do que a vida nos restringe. E seus jogos
falam dessa relação importante que os jogos narrativos (RPGs são jogos
narrativos também) trazem para todos nós. E é hora de conhecermos mais as
produções de Avery: elas são fundamentais ao mundo em que vivemos.
Cabe
a discussão inicial: mas os jogos não são apenas peças de entretenimento? Há
uma necessidade de “responsabilidade social” em toda prática lúdica? Bem, em
momento algum quero afirmar que todos os jogos devem se voltar a algo mais
“cabeça” (conceito complicadíssimo) ou que um jogo mais leve ou divertido não
tenha componentes importantes para nossa vida. Ocorre que destacar a produção
de Avery em uma sociedade com graves entraves sociais é algo que merece
destaque, sobretudo se observarmos os tristes episódios de nossos tempos (que
não mencionarei por aqui). “Ah, mas é possível ter uma pegada crítica em
qualquer jogo”, você pode afirmar. Sim, é verdade, mas vale destacar um pouco a
produção da autora e sua própria biografia.
Ribbon Drive |
Ribbon Drive é um jogo coletivo cujo propósito é narrar uma viagem em grupo, por meio de músicas organizadas em playlists que ditam o ritmo das cenas. Você já imaginou que certa parte da sua vida tem uma “trilha sonora” e que há uma influência na música não apenas no tema do que está vivendo, mas também no ritmo, no andamento da história? Então, este jogo fala disso, mas em uma história de uma grande viagem, repleta de possibilidades de reviravoltas, obstáculos e adversidades. Você pensou em Thelma & Louise e Pequena Miss Sunshine? É bem por aí!
The Quiet Year |
The Quiet Year trata da reconstrução de uma comunidade em uma condição pós-guerra. E isto se dá por meio de uma construção coletiva de ações, do cenário, do horizonte de expectativas que se abre em um mundo pós-apocalíptico. Utilizando 52 cartas, cada participante terá escolhas difíceis para encarar os infortúnios que se apresentarão (como em nossa vida) e precisarão agir coletivamente para superar as adversidades. Destaco em The Quiet Year a simplicidade mesclada a ousadia de propor o compartilhamento do espaço imaginado como meta de design, uma vez que o cenário “se abre” por meio da narrativa compartilhada (nutrida pelas mecânicas do jogo).
Perfect Unrevised |
Perfect Unrevised é meu jogo preferido da Avery. Sob a premissa “A sociedade é perfeita, menos você”, ele trata de uma distopia steampunk na qual todos os jogadores são criminosos (ser professor e criticar o sistema ou ser um artista e protestar por meio da arte são crimes, algo “bem distante de nossa realidade”, não?). Mas não se joga apenas com criminosos. Todos são também agentes da lei, que reprimirão as ações de outros criminosos. Isso quer dizer que todos irão, em uma parte do jogo, tentar subverter as forças do governo de Cadence (a cidade vitoriana ficcional onde o jogo se passa); mas noutra parte, agirão como agentes de Matrix caçando os criminosos como ratos, torturando e fazendo lavagens cerebrais nos jogadores. É um jogo duro, maduro, pesado e com altos questionamentos sobre a normatividade social, sexualidade, violência e restrição da liberdade, para além de toda uma crítica ao contrato social, sistema penal e processo de ressocialização. Imagine 1984 somado à Laranja Mecânica e Penny Dreadful. E nem vou comentar o enredo (ou como costumam usar hoje, o plot) do jogo, ou seja, a ficção por detrás do jogo, pois é algo sensacional.
Ainda há muitos jogos a comentar (sim, vou deixar uma surpresa para o final do artigo), mas acho que só mencionar inicialmente este três jogos já apresentam muitas novidades e questões interessantes para jogos narrativos. Continuamos na próxima parte!
Jorge dos Santos Valpaços |
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