Ainda afetados pela ressaca de Promethean a editora resolve apostar em um título que já havia sido planejado: Changeling The Lost. Não sei o quanto de expectativa foi posta neste lançamento por parte dos editores mas, com certeza, foram todas superadas. O título foi um sucesso. Venceu vários Ennies (inclusive Jogo do Ano)e arregimentou uma legião de fãs. Trouxe novos consumidores para a linha de WoD e apresentou RPG repleto de conceitos novos e inusitados (coisa rara em uma indústria que não se cansa de criar pastiches de si própria).
Changeling The Lost é, basicamente, um jogo de terror. Livremente inspirado no mito anglo-saxão dos changelings, seres que substituem crianças raptadas por fadas, o cenário faz uma reformulação radical do conceito. Nele o jogador assume o papel de um ser humano que foi seqüestrado por seres de poder incomensurável, as True Fae, para servir de escravo em Arcadia, o mundo das fadas. Em sua estadia em Arcadia a vítima se vê forçada a estabelecer “contratos” com os elementos deste mundo alienígena. Por ali nada funciona se não for à base de um acordo. Por exemplo, você pode beber água, mas a água não matará sua sede caso não seja feito um contrato com este elemento. Na urgência de assumir as funções designadas pelos seus captores as vítimas assumem vários contratos com a essência de Arcádia. Porém isso tem um preço: a transformação de sua natureza humana em algo híbrido entre o humano e o feérico. Um changeling.
Mas isso é só o começo da história. Transformadas definitivamente em algo não humano as vítimas agora passam por um período de sofrimento e privações. As True Fae, representações das lendas feéricas de nossa cultura, são profundamente egoístas e auto-centradas. Não possuem empatia com o humano. Não compreendem as nuances espirituais e emocionais deste ser que escravizam. Usam suas vítimas como usam um objeto qualquer. Fazem delas um meio para a realização de seus caprichos e delírios. Mas seus desejos e ambições são incompreensíveis para qualquer um que não seja como eles, pois as True Fae são seres alienígenas no mais alto grau. Um agravante: seus poderes em Arcádia são quase absolutos.
No entanto, o personagem jogador é um changeling que, de alguma forma, consegue escapar de Arcádia. Por algum motivo obscuro as memórias que estas vítimas possuíam de suas vidas passadas servem como guia para seu retorno ao mundo dos homens. De volta ao “lar” os changelings descobrem que nada mais será como antes. Eles perderam seus empregos, suas famílias e seu lugar na sociedade. São dados como desaparecidos ou mortos. Ou pior, foram substituídos por um simulacro de si próprios, os fetches. Estes são duplos criados pelas True Fae afim de substituir sua presença entre os homens, para que ninguém sinta a sua falta. Eles roubaram seu lugar no mundo, são amigos de seus ex-amigos, são os membros queridos de sua ex-família, são os funcionários exemplares de sua ex-empresa e, obviamente, não estão dispostos a abrir mão da posição alcançada. Mas essa não é a pior parte...
Não é difícil imaginar a quantidade de histórias de horror que um narrador pode criar com um plot desses. O jogo invoca uma atmosfera paranóica e opressiva mergulhada nos universos de Grimm, Andersen, Carrol e autores similares. Mas, no entanto, a proposta inicial pode enganar os incautos. O jogo está longe de ser tão pesado e depressivo como parece indicar sua ambientação. Na prática o que permanece é uma narrativa delirante, misturada a um estranho senso de humor. Sim. Changeling The Lost é um jogo bem humorado. Um jogo onde a desgraça alheia é sublimada por uma ambientação que parece ter saído de uma mente alucinada por viagens de LSD. As True Fae são criaturas perversas, mas são inteligentes e capciosas. Seus motivos e métodos são inusitados e dão margem para um festival de humor negro nas mãos de um narrador sacana.
O sistema de criação de personagem é um mérito à parte. É possível criar qualquer ser baseado nos contos de fadas e no imaginário popular mundial. O Princípe Encantado, O Lobo, A Bruxa Má, A Mulher de Branco, O Homem do Saco, O Elemental do Fogo, O Ogro Faminto, A Cuca, O Pinóquio, O Djin e etc, etc, etc... Ponha sua imaginação para trabalhar. As opções são quase infindáveis e, felizmente, vêm formatadas em um sistema coeso que apresenta algumas diretrizes iniciais aos jogadores.
A princípio se escolhe os Seemings, que são os tipos genéricos de Changelings disponíveis. São eles: Beasts, changelings que possuem alguma relação com aspectos animais; Elementals; Darklings, changelings sombrios e evasivos; Fairest, as musas dos contos de fadas, os mais belos e inspiradores; Ogres; Wizened, os pequenos, os mais semelhantes a anões, duendes e coisas afins. Estes seemings se desdobram kiths, que são subdivisões destes aspectos mais genéricos e representam a função específica que cada changeling possuía em Arcadia. Por exemplo: um beast pode ter vínculos com lupinos ou animais peçonhentos ou animais voadores e etc., um Elemental pode ser um Elemental do fogo ou da terra ou da água... E por aí vai. O livro básico apresenta alguns destes kiths. Mas em certos suplementos o número de kiths aumenta e, com a regra opcional de se poder misturar combinações distintas de kiths em um único personagem, as opções de customização crescem de forma impressionante.
Por fim, o jogador tem o direito de filiar seu personagem a uma das Cortes Sazonais. Tais cortes são a cortes do Inverno, do Verão, da Primavera e do Outono. Elas formam um sistema político que organiza a sociedade dos changelings no mundo dos homens. Sua função é importantíssima, tanto em termos de ambientação quanto do ponto de vista puramente mecânico. Tente jogar uma aventura sem utilizar o sistema de cortes e perceba o quanto se perde em jogabilidade. Elas dão uma possibilidade de orientação num mundo que está esfacelado. Servem como célula de proteção e convívio a seres que, como diz o titulo do jogo, estão perdidos. Dentro desta perspectiva, a vida dos personagens está sempre dividida entre a reconstrução de sua relação com a sociedade dos homens e a manutenção de seus vínculos com o freehold.
O freehold é o núcleo civil dos changelings neste mundo, e a cada estação do ano é governado por uma corte específica, em um esquema de alternância de poder. Por se tratar de um sistema político, pode-se dizer que, neste aspecto, Changeling The Lost lembra bastante Vampire. As intrigas de corte, fofocas, disputas de poder e temas relacionados servem de mote para uma boa parte dos conflitos que surgem no jogo. Isso não quer dizer que o jogo se centre nisso, pois a possibilidade de temas propostos pela ambientação é muito grande, mas com certeza o sistema de cortes será um constante background na maioria das crônicas.
As histórias em Changeling The Lost podem se passar em quatro “dimensões” distintas: Arcadia, The Hedge, o mundo dos sonhos e o mundo dos homens. Arcadia é a terra das fadas. O local para onde os changelings jamais pensariam em voltar, pois é o lar das True Fae e a memória de tempos que mereceriam ser esquecidos. São poucos os changelings que possuem uma recordação muito viva de Arcadia. A lembrança do tempo passado por lá equivale à recordação de um sonho ou de um período de embriaguez. O livro básico não apresenta possibilidade de jogo em Arcadia, mas um retorno a este local é possível, e está previsto em um sensacional suplemento chamado Equinox Roads.
Eventualmente, nos confins deste estranho “bosque”, surgem os Goblin Markets. Estas são “feiras” mantidas por hobgoblins, changelings e, perigosamente, True Faes. Ali se vendem itens alucinados e irreais, assim como quinquilharias humanas e feéricas, na qual muitos atribuem um estranho valor. Em datas de festival barganhas das mais surrealistas são feitas pelos corredores destes mercados.
E há também o mundo dos sonhos. Sobre ele basta dizer que qualquer changeling tem o poder inato de entrar conscientemente em seus sonhos e nos de outras pessoas; podendo assim realizar uma série de ações de acordo com regras específicas.
Esta resenha não pretende ser completa, pois se foca nos aspectos mais gerais da ambientação. Changeling The Lost ganhou muitos prêmios por se tratar de um jogo riquíssimo, e ainda falta muito que falar sobre ele. No entanto espero que ela tenha servido para criar um esboço geral do jogo na cabeça do leitor. Uma exposição mais detalhada dos sistemas especiais de regras e dos possíveis antagonistas irá aparecer em uma futura resenha, a ser publicada muito em breve, na qual eu prometo matar a curiosidade dos leitores mais detalhistas. Para o futuro também pretendo resenhar seus suplementos, que somam oito ao todo. Changeling The Lost foi concebido para ser uma série limitada, e seu planejamento editorial no tocante aos suplementos é um dos mais bem realizados que eu já vi em linhas de RPG.
Como última palavra. Dêem uma chance ao inusitado. Changeling The Lost é um jogo que impressiona em vários aspectos, da arte fabulosa à inacreditável sofisticação de sua ambientação. Não deve ser perdido por aqueles que procuram por algo novo, trata-se de um dos RPG’s mais criativos da nova geração. Diversão garantida ou seu ticket de volta para Arcadia.
Gostei da resenha.
ResponderExcluirEu jogo Changeling e posso dizer que a resenha ilustra bem os aspectos gerais do jogo.
ResponderExcluirSe voce esta curioso nao se acanhe e jogue, amigo.
você podia colocar essa resenha no http://mundodastrevas.com/
ResponderExcluirLá poderíamos trocar idéias.
Ficou muito bom, senti falta apenas de mais espaço para a Oneiromancia. ;)
Cara texto branco em tela preto e foda pra vista! muda isso ai! belo site!
ResponderExcluirEstava revendo (e relendo) "Stardust" do Neil Gaiman.
ResponderExcluirquando quiser levar isso para os encontros, sintase a vontade Paulo.
Braços
Brega