quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Os Limites da Interpretação

Olá pessoal, este é o meu primeiro artigo de fato para o blog. Lida com uma situação que acontece com certa frequência em mesas de RPG, onde jogadores se vêm forçados em agir com seus personagens de determinadas maneiras como se fossem "obrigados" a isso.

Quero deixar claro que esta é apenas uma visão sobre o problema, e que alguns grupos não vão sequer ver isso como problema, apenas como uma consequência natural do RPG. O que eu sugiro aqui é apenas uma nova maneira de olhar o assunto, que pode ou não funcionar para você.

Interpretação do Personagem

Heróis interessantes possuem defeitos.
Muitos jogadores (incluindo eu) têm o foco da sua diversão no RPG em construir e interpretar personagens. Para esses jogadores (de forma geral), o grande barato é ter um personagem que seja antes de tudo, uma pessoa. Esse tipo de jogadores costuma não se importar tanto com estatísticas, itens, talentos, e o nível de poder de seus personagens. Os personagens que criam tendem a possuir defeitos, algumas vezes graves.

Os jogadores então geram um certo apego à sua criação, e ao ato de interpretá-la durante o jogo. Até aí, nenhum problema. Os problemas para o grupo como um todo começam quando a interpretação de tais personagens é levada a extremos.


A Boa Interpretação

Existe um consenso que o bom jogador interpreta bem o seu personagem. O problema dessa afirmação é definir o que é uma boa interpretação, principalmente se levarmos em conta o contexto de interpretação dentro do RPG.

Antes de tudo, nós jogadores e mestres, muitas vezes não temos talento ou conhecimento de atuação suficientes para fazer juz aos personagens que criamos. Mas isso normalmente não é um grande problema, pois como o RPG é por definição um grande improviso coletivo, tudo fica "nivelado por baixo". Porém o jogador que atua bem deve ser bonificado pelo seu esforço.

A intenção de ter tocado nesse assunto é deixar bastante claro que não vou falar da atuação, e sim das decisões que o jogador toma com seu personagem durante o jogo.

Escolhas

Deixando de lado a atuação, o que resta são as escolhas que o personagem toma através do jogador. E aqui eu penso que há uma ligeira mas importante diferença entre o que é considerado pela maioria dos RPGistas como "Bom Roleplay" e "Mau Roleplay".

Boa interpretação é normalmente considerada como representar seu personagem de acordo com sua história, defeitos e qualidades. A má interpretação acontece quando o jogador força seu personagem a tomar uma decisão que vai contra sua índole, seja para benefício do grupo ou próprio. Outro caso clássico é o meta-jogo, ou pegar conhecimentos do jogador e aplicá-los como se o personagem soubesse daqueles fatos.

Eu acrescento mais um fator, que considero mais importante do que qualquer outro, que é a adequação da decisão do personagem ao grupo e ao momento da aventura ou campanha. Muitas vezes a decisão óbvia do ponto de vista do personagem vai atrapalhar o fluxo do jogo severamente, entrando em atrito com a diversão do grupo. Nesse momento eu acho que a boa interpretação é aquela que não vai contra os princípios de seu personagem, mas permite que o jogo flua e não atrapalhe a diversão dos demais jogadores, e isso muitas vezes não é a opção óbvia.

Decidindo Adequadamente

Você, e não seu personagem faz as escolhas.
Vamos imaginar a seguinte situação: um grupo de aventureiros explora uma masmorra. Um dos jogadores interpreta um clérigo, enquanto outro interpreta um
assassino. O código moral do clérigo impede que ele preste auxílio à pessoas como o seu companheiro. Há algum tempo, o grupo descobriu a verdadeira natureza do assassino, e vive  uma grande tensão interna. Ninguém confia no personagem, que escondeu sua verdadeira natureza apesar de nunca ter-lhes feito mal algum.

O clérigo, constante pregador das virtudes de seu deus, tenta converter o personagem agressivamente, mas só consegue irritá-lo. Em um dado momento o clérigo se nega a curar o assassino, se ele não se arrepender e pagar penitência pelos seus crimes. Então um acidente acontece, e o assassino acaba sendo envenenado pela sua própria flecha. O clérigo diz que é um castigo divino, e deixa o personagem se arrastar doente pela masmorra.

Mas o assassino é vital na missão. Ele é o batedor responsável por assegurar que não há armadilhas ou perigos ocultos à frente do grupo. Não há outro personagem adequado para assumir sua posição. Agora o clérigo detém grande poder em termos de fluxo de jogo. Sua decisão de não curá-lo pode levar até a morte de algum membro do grupo, ou o cancelamento da missão.

E agora? Muitos jogadores nesse momento continuarão interpretando o seu personagem da forma óbvia, e mesmo que outros protestem e discutam sobre o assunto, eles vão manter sua decisão. É aqui surge o problema. O fluxo de jogo é interrompido, o foco muda da missão para um conflito dentro do grupo, e todos tem suas expectativas frustradas. O jogador na posição do clérigo costuma ver isso como um problema alheio, pois ele está apenas fazendo o que seria natural para seu personagem.

O jogador nesse momento deve ser flexível, para o bem do jogo ele deve arrumar uma maneira de conciliar seu personagem com as necessidades do grupo. Talvez ele se lembre da vez que o seu companheiro salvou sua vida, percebendo um inimigo oculto prestes à atacar antes que pudesse reagir. Talvez uma informação retirada do submundo pelo assassino tenha levado o grupo a salvar uma vida inocente. Ou o clérigo perceba como ele nunca traiu o grupo, mesmo tendo oportunidades diversas para tal. Afinal de contas, na maioria das religiões há o perdão!

A oportunidade de interpretar está ali! Fazer o óbvio é maçante! Essa visão de jogo é muito mais interessante para o grupo. Pode render momentos memoráveis em campanhas e aventuras.

Conclusão - O Grande Tabu

O grande tabu é a palavra "obriga". Não se deve pensar nunca que seu personagem o obriga a tomar uma determinada decisão, isso é quase que preguiça por parte do jogador. Crie situações e interprete uma saída, sem trair o seu conceito de personagem. Acredite, isso é possível. Como pode um personagem de sua própria criação o obrigar a fazer isso ou aquilo? A criatividade aqui é tudo.

Liberte sua criatividade!
Ao criar um personagem com um defeito muito grande, o seu desafio de interpretar conciliando as suas decisões com o fluxo do jogo será proporcional ao defeito que você escolheu. Se você gosta desse tipo de desafio (eu adoro!) vá em frente, mas esteja preparado para flexibilizar a interpretação para conciliar o fluxo de jogo!

Encarar os defeitos do personagem como desafios é muito divertido e interessante para os que gostam de interpretar personagens complexos! Além disso, tem o potencial de deixar você menos frustrado com conflitos do grupo.

Para fechar o artigo, deixo a sugestão de que o limite da interpretação seja a diversão do grupo. Antes um momento de má interpretação do que uma briga entre os jogadores...

Até a próxima!

Saudações rpgísticas,
  Antônio "Wizard" Henning

Original:

Contrato Social - O Limite da Interpretação

Este artigo (levemente editado para o SdM) faz parte de uma série do meu blog, sobre situações envolvendo o Contrato Social no RPG.

Inspiração:

RPG é realmente um Role Playing Game? do blog Acarajé & Dragons.

5 comentários:

  1. Eu já tinha gostado da matéria, essa mais concisa ficou excelente!

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  2. Muito boa. Gostei! Mas essas diferenças sociais é que faz o grupo ser mais vivo, personagens de "alinhamentos opostos" e nas campanhas que mestrei e participei acontece muito isso. Mas a parte das brigas internas, também pode ser interessante para o pessoal chegar num senso comum. No grupo mesmo de D&D 4 aqui uma vez o Anão teve que resolver suas diferenças com o Feral do grupo, indo pra porrada.

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    1. Claro Rodrigo! Em certos grupos dá pra rolar conflito na boa. Mas em outros só trás frustração.
      Depende de muitos fatores, mas os limites estão ali. A minha idéia é mostrar que existem alternativas válidas e interessantes para representar conflito, sem recorrer à violência.
      Mas dependendo do entrosamento dos jogadores, os limites se expandem!

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