A Primeira Guerra Mundial foi um dos conflitos mais violentos de toda a história da humanidade.
Nunca tantas pessoas morreram, nunca tantas novas tecnologias haviam sido testadas em campo, e nunca mais o mundo foi o mesmo.
Três grandes impérios se desmancharam, dezenas de milhões morreram, e boa parte, se não toda, a geopolítica dos 100 anos seguintes foram desenhadas a partir desta guerra.
Porém, em meio a frágeis aviões, uso de gases letais, protótipos de tanques e muita luta político-ideológica, a "Primeirona" é lembrada, substancialmente, pelas longas guerras de trincheiras.
E "Trench", um jogo português, criado pelo game designer Rui Alípio Monteiro em 2008 (e só recentemente fazendo mais barulho por essas bandas nesse lado do Atlântico), com similaridades ao Xadrez, Dama, e ao Go explora com excelência a temática e traduz, de forma bastante criativa, a luta de trincheiras.
Tenho tido o privilégio de trocar "figurinhas" com ele e sua esposa, Maria Luísa Monteiro, há já algumas semanas, e minha admiração pelo jogo só tem crescido. Começar a ver o desenho de possibilidades estratégicas, de táticas "suicidas" que permitem trocas vantajosas de posição ou superioridade numérica, o desafio de arriscar um ataque sem abrir demais a guarda da defesa, com cada componente e armadilhas como possíveis desdobramentos, tem sido uma experiência prazerosa para mim.
Vamos, então, falar um pouco dele:
(o manual cita A Arte da Gurra" em diferentes momentos) |
Visualmente Trench é de encher os olhos. O tipo de jogo de tabuleiro que se deixa, feliz, montado em cima da mesa para visitas. Mas como minha função na vida nunca foi a de agradar visitas (é, eu sou um chato), para mim o jogo preenche outro tipo de necessidade: Ele é gostoso de se jogar.
Em termos gerais, conforme aprendi com meu professor, Daniel de Sant´anna (citando Jared Sorenson), um jogo deve fazer as seguintes perguntas:
A- Sobre o Que é o Jogo?
B- Como o jogo Permite que isso Aconteça?
C- Como o Jogo Recompensa Isso?
a) O jogo reflete um pouco a vivência estratégica das trincheiras (sim, eu sei que existe uma diferença entre estratégia e tática, mas meus conhecimentos parcos em historia militar não me permitem diferenciá-los. Se utilizar errado aqui, peço desculpas). Simples assim enquanto resposta, Trench nomeia seu principal componente, a trincheira, evocando desde o inicio o jogo de gato-e-rato que as mesmas envolveram.
c- O jogo recompensa uma boa visão estratégica com mais pontos, o que pode levar a uma vitória em duas partidas. Forçar o desgaste do inimigo sem excessiva exposição é a chave nesse jogo e o que acaba por ser recompensado.
Como se Joga:
Impossível se resumir todas as regras aqui. Vou só dar um apanhado geral:
O tabuleiro usa quadrados distribuídos em 8x8, como no xadrez e na dama. Diferentemente, no entanto, o tabuleiro fica a 90o, , se parecendo mais com um "losango" do que com um quadrado. Em um dos conceitos originais o inventor do jogo chegou a se utilizar de um tabuleiro de 12x12 (descobri por acaso ao compartilhar uma imagem assim e ele me chamar a atenção ao fato). Mas, pessoalmente, acho que 8x8 é uma escolha melhor em um jogo que "desintreicheirar" o adversário nem sempre é fácil.
De acordo Maria Luísa Monteiro:
"No primeiro prototipo do TRENCH, o tabuleiro tinha 144 casas (12x12) e as peças eram 50 na sua totalidade (25 + 25): 1 general, 2 coronéis, 4 capitães, 6 sargentos e 12 soldados, por cada exército, ao invés do TRENCH atual cujo tabuleiro tem 64 casas (8x8) e 32 peças (16+16): 1 general; 2 coronéis; 3 capitães, 4 sargentos e 6 soldados.
Após vários testes optou-se por reduzir o nº de casas do tabuleiro e respetivamente o nº de peças, uma vez que o TRENCH ganhava em termos de mecânica maior dinâmica."
Cada metade do tabuleiro é especificada em quadrados escuros ou claros, definindo bem o campo de cada jogador. Esta divisão é fundamental pois é ela que define a linha da "trincheira", uma "risca" central aonde cada jogador pode colocar suas peças de forma mais protegida.
Uma peça posicionada em uma linha de trincheira só pode ser atacada por uma peça inimiga que ataque de trás, ou seja, que invada o campo inimigo e ataque as "costas" da peça. Isso força um ataque de exposição de uma peça. Ela precisa ir até o campo inimigo para poder voltar e causar algum estrago.
Cada peça tem um número de "andares", que definem não apenas a patente da mesma e seu valor, mas também o número de casas que a ela é permitida o máximo de movimentação (por exemplo, uma peça de dois andares pode andar até duas casas).
As peças são nomeadas de acordo com sua patente (Soldado, Sargento, Capitão, Coronel, General), sendo progressivo o número de casas que podem ser utilizadas na modificação e as direções que cada peça pode tomar).
Tal qual uma trajetória de bala, a direção de cada peça deve ser a de uma linha reta, e uma peça não pode pular outra.
A partida termina quando um jogador toma todas as peças de um adversário. Em geral duas partidas são necessárias para se somar o numero de pontuação em cada e se definir o vencedor. Mais baixas = mais pontos para o adversário.
O jogo ainda tem dois modos de jogo: (Regular e Variante), que definem condições diferentes de vitória e permitem estratégias ligeiramente diferentes, como turnos por tempo, sob o risco de perder uma jogada.
Notação de Partidas:
O modelo atual de tabuleiro vem sem essa numeração, mas deixo ela como indicativa (com autorização do criador do jogo) para mostrar como as peças são "localizadas". Uma nova versão deve sair em breve com a devida modificação.
O tabuleiro, acima, está deitado (o posicionamento correto é em formato de losango, como já explicado), mas para as devidas explicações, não são um problema.
De modo similar ao xadrez, a notação é feita a partir da peça na casa em que está e para ponde se direciona (por exemplo SOL P (soldado preto) 4d; 4e (indicando posicionamento do mesmo).
Como ainda não existem partidas descritas fico devendo um exemplo mais extenso. Mas nãome parece que seja muito diferente de resto de partidas anotadas em xadrez.
SOL - Soldado
SGT – Sargento
CPT – Capitão
COL - Coronel
GEN - General
O Jogo e sua Arte:
Visualmente o jogo tem inspirado algumas coisas bacanas, como exposições e tabuleiros diferentes.
Isso é relevante porque, primeiro, reforça a idéia de que o visual de um jogo é extremamente importante para a experiência de jogo. Um jogo bonito visualmente chama mais a atenção e ajuda a estabelecer uma ligação quase imediata com seu conceito. Não à toa o Rui é um designer.
Em segundo, porque ajuda a mostrar um pouco a vibe do jogo.
Há tabuleiros belíssimos sendo produzidos, inspirados no conceito original, bem como exposições de arte que brincam com a imagem do jogo. quem tiver tempo, dá uma googlada para ver algumas coisas bem interessantes.
Afinal, Trench é o "Xadrez" do Seculo XXI?
O jogo é defendido assim por alguns entusiastas. Eu não gosto deste tipo de definição e explico o porquê:
Trench é uma jóia raríssima de se encontrar em termos de jogos de estratégia, mas não se compara um rubi ou uma opala a uma safira ou um diamante, do mesmo modo que não se diz que "Picasso é o novo Michelângelo". Cada um deles tem características unicas e promove uma experiência distinta de se vivenciar.
Definamos que Xadrez é Xadrez, Trench é Trench e Go é Go, e apesar de pontos similares possíveis, cada jogo denota táticas e experiências únicas. Ou seja, não se trata de "ou um ou outro", mas sim de jogue um e jogue o outro, TAMBÉM. Capiche?
Em segundo lugar, porque espero que Trench não seja um jogo somente do Seculo XXI, mas de muitos outros mais, assim como o Xadrez coexiste com outras tantas formas de jogos há tantos anos. Vida longa e próspera ao Trench, portanto.
Problemas:
Sempre que experimento um jogo procuro falhas. sobretudo nos que admiro, e isso não é exceção em Trench. Encontrar cosias que poderiam ser feitas de outro modo são uma forma, para mim, de respeito sincero ao empenho de um criador de jogos, porque é dizer a ele "nós jogamos e pensamos sobre o que nos apresentou". Assim, as críticas abaixo se demosntram respeitosas e construtivas, e não desabonam o jogo em si.
Vamos a elas (e são poucas):
-Em primeiro lugar, como enxadrista, senti falta de uma numeração lateral no tabuleiro. É um hábito o de poder ler jogos de terceiros para pensar novas estratégias. Isso não existe na atual versão do jogo, mas de acordo com a excelentíssima Maria Monteiro, é algo que será apresentado em uma próxima edição do jogo.
A notação ainda é possível, só se sugerem cuidados a mais neste sentido. Isso pode ser observado acima, na parte sobre anotações do jogo , mas só será um incômodo (leve) se sua intenção for a de anotar as partidas (a maioria dos enxadristas não anota as suas, de qualquer modo).
Com o jogo se popularizando em vários países como está, acredito que as partidas anotadas tendam a se tornar mais comuns. Resta-nos esperar.
-Em segundo, o preço ainda salgado para os bolsos brasileiros é um problema que outros jogos importados trazem consigo: São extremamente bem feitos, mas sua aquisição pode requerer algum planejamento financeiro. Especificamente nesse caso, as taxas de importação são um tanto abusivas e abusadas. Em um jogo como Trench, que tem um potencial pedagógico bastante interessante, sua utilização prática se minimiza. Não é um caso de culpa ou responsabilidade dos produtores e do criador do caso, só relatando as cosias como são, infelizmente.
Neste sentido, no entanto, os criadores dos jogos tem buscado soluções para diminuir pouco o custo final, e em breve, espero, o tabuleiro poderá ser adquirido com mais facilidade.
De minha parte, a esperança é que alguma importadora ou produtora de jogos consiga tornar o jogo mais acessível aqui no país, e que, quem sabe, a produtora portuguesa, mais para a frente, disponibilize uma versão "de bolso" para o jogo, o que ajudaria para mim, tanto na popularização do jogo, devido à sua portabilidade, como no preço final por aqui.
-Versão Beta do jogo Eletrônico: É quase uma injustiça se falar mal de uma versão beta. Esse tipo de versão é mais fraca, necessariamente. Mas a inteligência artificial do jogo em sua versão online ainda é fraquinha (sabida e reconhecidamente). Cito aqui porque é necessário, mas tenho a certeza de que em pouco tempo teremos um "Deep Blue" do Trench (olha eu comparando com xadrez aqui) dos infernos para nos desafiar e divertir.
Outra opção é usar a Versão Beta para localizar outros jogadores e enfrentar um adversário online.
Considerações Finais:
Eu sou um fã confesso desse jogo. Tenho gostado de jogar com meus dois filhos e acho delicioso o jogo de gato-e-rato que o tabuleiro propicia enquanto experiência. Não deixei de jogar Xadrez e outros jogos por causa disso e devo levar em encontros que participo para quem se aventurar.
Alguns tabuleiros estão sendo levados por outras pessoas, como o Amauri (Dungeons Carioca) para apresentação em encontros aqui no Brasil. Eu certamente levarei em alguns Saia da Masmorra, entre outros.
Quem desejar saber onde e quais, trocar ideias sobre o jogo, e fazer como eu, e encher o Rui de perguntas (da meia-noite às seis sou extremamente prolixo, não sei como ele e a Maria me aguentam, sinceramente) temos uma comunidade com mais de Cinco Mil membros no facebook:
TRENCH BRASIL
Abraços e bora nos entricherarmos pessoal!
Brega Presley
Excelente texto Brega, parabéns. Pontos e argumentos muito bem destacados.
ResponderExcluirSó verifique a linha "Com o jogo se popularizando em vários países como está, acredito que isso", pois parece não ter o final da frase.
Quem sabe não utilizam o engine e IA do Fritz no Trench ? Me parece bastante adaptável, o grande problema ao meu ver seria a mudança de tabuleiro...mas quem sabe ???
Oui Fausto. Problema localizado e resolvido.
ResponderExcluirForte abraço!