quarta-feira, 12 de junho de 2013

Barbaros na Mesa de Jantar: Mestrando para Crianças


Barbaros na Mesa de Jantar: Mestrando para Crianças
 (Pedro Vitiello)

Uma das experiências recentes mais ricas que tenho tido é a de fazer mesas com crianças e pré-adolescentes.  É rica pela quantidade de aprendizagem e desafios que a tarefa representa, e, ainda que não seja uma tarefa à altura dos 12 Trabalhos de Héracles, bem, também nem tudo são rosas e mamão com açúcar.
            
Antes de tudo temos a questão da faixa etária. Ainda que várias brincadeiras ligadas a narrativa e imaginação, jogos de mesa e RPGs de computador variados sejam adequados para faixas etárias menores (nem todos os jogos, diga-se), um jogo de RPG só é realmente funcional com idades a partir (na média) dos sete anos, quando a criança entra no período das operações concretas (período descoberto e descrito por Jean Piaget). Esta fase, que vai até os onze ou doze anos (novamente, em média) traz em si alguns avanços bastante interessantes em termos de cognição, e é possível se observar, de modo bastante prático, o processo de desenvolvimento em cada criança, mesmo que, no caso, só a título de curiosidade.
               
O período anterior, chamado de “Pré-Operatório” que costuma ocorrer entre os 2 e os 7 anos, se destaca por características como Domínio da Linguagem, possibilidade de obediência a partir da moral de adultos (que ainda definem largamente  o que é certo e errado em cada situação), domínio da linguagem e brincadeiras ainda muito individualizadas, ou seja, uma maior dificuldade em se colocar no lugar do outro.
Nenhuma dessas características é fixa e se modifica, magicamente, aos sete anos. É um processo onde gradualmente estas capacidades vão se fixando, e mesmo aprendizagens e potencialidades de fases posteriores podem aparecer, dependendo de questões biológicas, psicológicas e de possibilidade ambiental, mas são movimentos que dependem enormemente da criança e de suas condições, de qualquer modo.
               
Fora isso, até essa idade, a maior parte das crianças pequenas ainda está passando por um processo de alfabetização, familiaridade com os números e seus significados, e ainda requerem grande esforço em desprender a realidade imediata e real da emocional.
               
Novamente, isso depende de cada criança, mas na média não é incorreto dizer que a imensa maioria das crianças, até a idade de 7 ou 8 anos, não irá conseguir aproveitar uma mesa de RPG como crianças e adolescentes maiores.
               
Já na idade que aqui nos interessa, a fase ou período das abstrações Concretas, traz consigo uma série de capacidades que a criança já pode utilizar em uma mesa de RPG, ainda que alguns cuidados precisem ser pontuados.
               
Este período traz consigo, por exemplo, as habilidades iniciais da capacidade de se utilizar lógica, de entender de modo mais complexo as relações de causa e efeito, bem como de entender de modo mais aprofundado determinados paradoxos entre uma fala e outra.
               
Por exemplo, uma criança menor pode ter maiores dificuldades em compreender que um cavaleiro usando uma armadura de ferro terá sérios problemas para nadar em um rio, enquanto crianças a partir do período das operações concretas já o podem fazer espontaneamente em muitos dos casos.
               
Por ser  o RPG um jogo que simula, ainda que com diferentes graus de precisão, a realidade, e aberto a interpretações, a criança que consegue pensar e antever algumas de suas ações tenderá a aproveitar melhor os momentos lúdicos neste tipo de atividade.
               
As operações matemáticas, muitas vezes necessárias para se pensar as chances de risco de sucesso ou fracasso em uma ação são outro fator que vai sendo melhor desenvolvido nessa idade. Se um jogador sabe, de modo mais internalizado, que as chances de conseguir 19 ou 20 em um dado de vinte lados, sendo este  o númerov necessário para acertar um inimigo descrito como distante, poderá, por exemplo, rever sua estratégia, tentando descrever uma fase de “aproximação” de seu personagem, escolhendo outro alvo mais fácil, etc.
               
Isso evita tanto a frustração de ver uma ação fracassar, como diminui um possível atrito com o mestre com uma daquelas frases do tipo “Você está roubando” ou “Ah, mas fazer isso é impossível” (quando não é, é apensas muito, muito difícil, mas as vezes vale a pena o risco).
               
A capacidade de memorizar fatos históricos e geográficos é outra habilidade em desenvolvimento útil aqui. Seja na memorização de um mapa de uma masmorra, seja no recordar de um ponto qualquer descrito em uma descrição do Mestre do Jogo. Essa capacidade de memorização, associada a uma capacidade lógica mais eficiente permite que jogadores-mirins possam resolver problemas lógicos com alguma eficiência.
               
Por exemplo: Em uma aventura que fiz com meus jogadores, distribui para eles uma folha com o alfabeto grego, mais pela curiosidade do que pela utilidade então. Algumas mesas depois, usando outro conjunto de regras e ambientação, resolvi propor um enigma, onde letras gregas formavam uma palavra (em português) para a abertura de uma porta mágica. Eles precisavam apertar as letras na sequência adequada. Além de reconhecerem as letras e buscarem em suas pastas o “dicionário” de letras gregas,  com algumas tentativas e erros descobriram a sequencia correta (a palavra “ABRIR”) mesmo com alguma dificuldade em fazer um paralelo imediato do nosso alfabeto com o grego. Como resultado, abriram a tal porta e receberam uma recompensa, na forma de armas poderosas e dinheiro.

              
Este tipo de capacidade não seria possível com as mesmas crianças uns dois anos atrás. Simplesmente porque elas, agora com idades entre 8 e 9 anos, ainda não tinham atingido desenvolvimento cognitivo suficiente para a “luzinha” aparecer sobre suas cabeças e fornecendo um insight que fornecesse a resposta correta para  o enigma.
               
A “Auto-análise”, que é a capacidade de aprender com os próprios erros, fornece outra facilidade enorme que possibilita a “mestragem” para estas idades. Afinal, se ele ou alguém do grupo, comete um erro em uma aventura, deixar de insistir em erros similares poupa uma série de consequências negativas para a criança.
               
Em termos emocionais, ainda que seja objeto a ser visto de caso em caso, a capacidade de frustração na eventual “morte” de um personagem faz com que a mesa possa ser um pouco mais elaborada (e difícil), permitindo desafios como armadilhas e combates que tragam maior satisfação ao serem (em geral) resolvidos, o que aumenta o prazer tanto para quem mestra, quanto para quem joga.
               
Há ainda um fator de planejamento de ações, entendimento das necessidades de outros jogadores e seus pontos de vista, que favorecem enormemente jogos de cooperação mútua, como é  o caso do RPG. Afinal, quando um jogador entende que ele PRECISA que um outro personagem fique mais poderoso nesta ou naquela habilidade, para poder, inclusive, cuidar melhor do personagem dele, isso faz com que estratégias e ações conjuntas, de benefício mútuo, possam ser elaboradas.
               
Um fator complicador na idade é a maior tendência a certo sexismo. Uma vez que  o RPG, ainda, é jogado por uma maioria da população do sexo masculino, é preciso algum esforço por parte do mestre para balancear uma mesa que tenha, por exemplo, uma garota (tenho duas meninas e dois meninos jogando comigo atualmente, e não tenho problemas, mas o risco potencial existe).
               

Uma criança nesta idade ainda não consegue mestrar. Isso porque sua capacidade narrativa ainda requer maiores refinamentos, e é complicado coordenar não apenas uma história, mas interpretar  e codificar significados descritos em termos de números-alvo de dificuldades, improvisar narrativas paralelas quando os jogadores fazem algo inesperado, e compreender e reagir de forma mais equilibrada a conflitos em uma mesa, seja entre jogadores, seja deles para com o mestre.

               
O que Mestrar?
               
Antes de tudo, leve em consideração a faixa etária dos jogadores em potencial bem como seus gostos e referenciais culturais. Na minha infância, Ciborgue, o Homem de Seis Milhões de Dólares, estava, como se diz hoje em dia “bombando”. Mas para crianças atuais, desenhos como Pokemon, Cavaleioros do Zodiaco (sim, ainda), Bem 10 e afins podem ser mais atraentes em termios de história. Uma dica é conversar com o grupinho antes e saber que tipo de coisa eles gostam de assistir na TV, ou mesmo, em alguns casos, em termos de cinema, quadrinhos ou música.
               
Em geral, aventuras medievais do tipo Senhor dos Anéis ou espaciais do tipo “Jedis” são as mais conhecidas e aventuras que permitam a criança identificar estes cenários facilitam a vida. Note que o mestre não precisa usar estes cenários em si, mas nas descrições pode perfeitamente usar alguns destes elementos (de novo, se as crianças conhecerem) como forma de enriquecer uma narrativa.
               
Ao narrar, use exetencivamente material gráfico, como imagens de personagens, de prédios ou castelos, mapas, etc. Este tipo de recurso pode ser fundamental para o jogador entender ao que se refere exatamente quando, por exemplo, fala de um beholder.
               
Em termos de tempo, minha sugestão é a de que as mesas não ultrapassem as duas horas de atividade. Manter a concentração por um período maior que este pode ser impossível, já que esta fase, cheia de energia, precisa muitas vezes de inúmeros “levantar e correr!” ou demonstrações de como um monstro morre sendo descritas via mimica e em pé, com direito a saltos no chão, etc.
               

Há dois tipos de formatos que em geral são recomendados para crianças:
               
O primeiro são jogos extremamente abertos , como o excelente “CAT” de John Wick, ou jogos como “Santiago Joe” que dispensa o uso de dados e usa apenas a narrativa como elemento condutor. São recomendados para crianças sob uma premissa bem-intencionada, mas errônea, baseada na imaginação fértil infantil
               
Sim, crianças são criaturas imaginativas. Mas esta plasticidade narrativa tem um preço: Além de serem extremamente randômicas, pulando e acrescentando dados que nem sempre combinam (como alienígenas, Pokemon e Cavaleiros do Zodiaco na mesma frase), são cansativas, pois requerem da criança uma constância na imaginação que requer enorme esforço e memorização.
               
A manutenção de toda essa imaginação gasta enorme energia mental ou seja, e pode cansar quando, ao mesmo tempo, esta fertilidade de fantasia precisa fazer florescer frutos da imaginação aproveitáveis e “amarrados”. Em uma mesa com três ou quatro crianças, cada qual querendo trazer sua fala e imaginação, isso é uma receita para  o desastre, ou, no caso, uma mesa ruim e desgastante para todos.
                Prefiro ir na contramão neste sentido. E a minha sugestão é a de que se dê aos jogadores uma ambientação mais estruturada inicial. Uma masmorra, neste sentiodo, é perfeita. Concreta, com escolhas simples (abrir ou não abrir uma porta, seguir por este ou aquele lado, lutar ou fugir, etc), que não deixam de fazer a imaginação e a criatividade serem exploradas, mas ao mesmo tempo são estruturantes, e quando o jogador cansa de imaginar pode ter um tempinho de refresco mental e simplesmente se deixar levar por um sólido corredor imaginário.
               
Crianças são, enfim, jogadores selvagens, no melhor sentido, que costumam retirar enorme prazer da atividade de um jogo como o RPG, ainda que diversos cuidados sejam necessários. Um deles é o de jogar em um local onde outros adultos possam “supervisionar” a atividade. Este cuidado tem a ver com um desconhecimento quase absoluto do que é o RPG em nossa sociedade e, ainda que não tenha conhecido, em mais de 20 anos de jogo, um outro RPGista que fosse meu amigo e em quem não confiaria meus filhos, nem todo mundo pensa assim, então para não correr  o risco de mal-entendidos, faça a atividade em local tão publico como possível. Tenha cuidado com o tipo de aventura a ser escolhido (evite aventuras violentas demais, ou com temáticas inapropriadas para a idade, evite falar palavrão, etc. São coisas meio obvias, mas que precisam ser ditas ao menos uma vez em algum lugar.
               

                                Resumo:
-Descubra os referencias das crianças antes de fazer a aventura, e construa a história a partir de referencias que eles compreendam.

-Evite mestrar para crianças de 7 anos ou menos. Em geral eles ainda não irão aproveitar de modo mais eficiente o jogo e pode ser frustrante ou traumático.

-Dê preferência a jogos com regras e estruturas de ambientação bem estruturadas. Isso permite que a criança-jogadora aproveite a diversão sem se cansar demais e querer encurtar a atividade. Old Dragon, por exemplo, com regras simplificadas, é uma boa escolha.

-Tenda a ser mais breve nas mesas do que seria com jogadores mais velhos. Jogos de 2 horas, em minha experiência, costumam ser mais eficazes e menos cansativos, e aumente, gradualmente mais lentamente, este período, se e quando necessário (ou diminua, quando for o caso).

-Tenha a mão um bom numero de imagens para a ventura, mas também reservas. Algumas vezes pode ser necessário. Recursos como tablets e computadores portáteis são uma mão na roda nessas horas.

("psicografado" do além do aquém por Brega Presley)

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