sexta-feira, 15 de agosto de 2014

COMIDAS TÍPICAS NOS JOGOS DE RPG

Texto de Daniel Martins, publicado originalmente no blog "Mago Maligno".Reproduzido aqui com autorização do autor.


"Já faz um tempo que mestro seções de RPG, e tenho um contato com esses jogos de fantasia medieval; fiz várias observações até ter a ideia de escrever esse texto, fazendo uma breve análise. No presente texto, resolvi abordar a questão da alimentação nesses mundos medievais dos jogos e observei primeiramente quais as principais influências na cultura dos games. Pude observar que muita coisa é de origem Nórdica; desde o velho “Dungeons & Dragons” até jogos de computador, como o recente “Skyrim: the Elder Scrolls V”. Entre a maioria dos jogos de RPG ambientados em fantasia medieval, podemos ver que do mundo medieval temos pouco; não arrisco falar em porcentagem, mas, certamente, mais da metade do folclore é Nórdico, a outra parte se divide um pouco em Medieval e outras culturas como a Greco-Romana. Notei que a abundância em alimentos nos jogos se faz muito presente, algo que não seria a realidade dos Servos medievais, mas em se tratando de fantasia, de um jogo criado, tudo é possível. Mesmo assim procurei buscar literaturas que retratassem a época, para assim justificar essa fartura em alimento presente em alguns jogos e livros, como o próprio “Senhor dos Anéis” de Tolkien. Para começar, vamos pegar um trecho de “Beowulf”, logo no primeiro banquete descrito:

“Havia ali toda espécie de alimentos que a mente humana possa conceber. Destes, sobrepujava a caça abundante, assada em gigantescas fogueiras erguidas a céu aberto, onde haviam sido improvisados verdadeiros matadouros. Ali, os cozinheiros, inteiramente despidos, chapinhavam furiosamente de lá para cá em córregos de sangue, carregando nos ombros postas, quartos e até mesmo carcaças inteiras para serem lançadas sobre as labaredas insaciáveis. Uma nuvem espessa, produto do sangue e do sebo a escorrerem incessantes sobre as brasas chiantes, envolvia homens e carcaças a ponto de quase fundi-los em inéditos e fantásticos seres (…) Naquele dia, pois, muitos comeram e beberam até morrer – morte esta que, para um nórdico autêntico, era a segunda melhor de todas as mortes.” (capitulo 1 o salão do banquete p.16-17)
(Franchini, A . S. Beowulf: recriação em prosa do poema medieval inglês / por A . S. Franchini e Carmem Seganfredo, 2ª ed. - Porto Alegre, RS: Artes e Oficios, 2008.)

Quero exemplificar com um texto ainda mais fiel ao original de sua época, uma vez que os textos nórdicos foram feitos e refeitos várias vezes. O exemplo escolhido foi um texto de um poeta e trovador francês, Chrétien de Troyes (1135-1191), um dos primeiros a escrever romances de cavalaria, em determinado trecho de sua obra “Perceval”, em que o mesmo personagem desfruta de uma cesta repleta de iguarias alimentícias:

“É verdade que jejuou tempo demais! Está morrendo de fome. Avista um barrilete de vinho. Ao lado, uma taça de prata. Depois, sobre um feixe de junco, um guardanapo branco e novo, Ergue-o. Encontra embaixo três belas tortas de carne de cabrito, que não o podem desagradar. Por grande fome, eis que começa a comer uma torta, que acha gostosa. Enche grandes copadas e as engole em largos sorvos. O vinho não é dos piores!” (p.35)
(TROYES, Chrétien de. Perceval ou O Romance do Graal; tradução de Rosemary Costhek Abílio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.)

Lendário banquete Hobbit 
Percebo um fenômeno nos jogos de RPG e similares, nos quais se busca unir todas as épocas da história humana em uma só. O período medieval foi muito extenso e as realidades eram diferentes no inicio e no fim: épocas de guerra, peste, fome, e até de fartura na pós peste; um mundo de muitas florestas a serem desbravadas ou de rotas prontas e movimentadas. Esses aspectos são misturados e assim cria-se um mundo de fantasia medieval. Isso vai depender do mestre; o mesmo pode estipular até regiões de fartura e regiões de miséria, como, por exemplo, a aparição de muitos lobos em regiões pobres e frias, lobos que caçam crianças nas cidades ou adultos indefesos. Nesse contexto, lobisomens são bem vindos também. Para uma melhor descrição de um ambiente destaco o seguinte trecho do livro de Ondenbourg:

“Com exceção do porco e das aves, o gado doméstico não era muito utilizado como carne de corte. Mas os nobres, grandes comedores de carne, traziam de suas expedições à floresta montanhas de perdizes, de galos selvagens, de lebres e cabritos. O urso, o cervo e o javali abatidos eram transportados em triunfo, e nas vésperas dos banquetes, as pequenas aves - codornas, tordos, ortolanos – mortos às centenas, transbordavam das bolsas dos caçadores pelo chão das cozinhas, em pilhas sangrentas e viscosas. Reinava nos castelos um cheiro de sangue, de peles recém-escorchadas, de fumaça de carnes grelhadas misturas com o cheiro dos cães, dos falcões de caça e dos homens. As carnes secas ao sol ou defumadas em grandes chaminés não se conservavam bem, sendo necessário renovar sempre as provisões. Havia | falta de sal e pimenta, indispensável para prolongar a duração desses viveres, sempre ameaçados de apodrecimento, e também para torná-los mais comestíveis.” (p.34-35)
(OLDENBOURG, Zoé. As Cruzadas. Rio de janeiro. Editora Civilização Brasileira S.A. , 1968.)

Ainda falando sobre o caso dos lobisomens em regiões de penúria e fome, posso citar trechos que comprovam e explicam melhor lugares que se encontram nessas condições. Essas situações podem servir em um jogo para a introdução de lobisomens, uma trama que envolva apenas o canibalismo, ou ainda ataque de lobos a uma região. Como exemplo, cito trechos do tratado de licantropia de Sabine Baring Gould. Nesse primeiro exemplo, uma citação de como agiriam lobisomens genuínos na idade média:

“Quando uma habitação é encontrada isolada na floresta, as feras invadem-na violentamente, arrebentando as portas, e quando o fazem, devoram todos os humanos e todos os animais encontrados. Elas invadem as adegas, esvaziam os barris de cerveja ou hidromel e empilham os caixotes vazios no meio da adega, mostrando sua diferença entre os genuínos lobos naturais.” (p.43-44)

Agora citando um trecho onde se fala no caso de canibalismo:
“Em maio de 1849, o estalajadeiro de Polomyja perdeu alguns patos, e a suspeita recaiu sobre o mendigo que ali morava, e de quem ele não gostava muito, visto que era um homem trabalhador, enquanto Swiatek mantinha a si mesmo, esposa e filhos por meio da mendicância. Embora tivesse suficiente quantidade de terras aráveis que poderiam gerar uma excelente colheita de milho e produzir verduras e legumes se aradas com cuidado (…) Conforme abriu a porta, viu que o mendigo rapidamente escondia algo sob seus pés, embaixo das longas vestes. Em um instante, o estalajadeiro estava a seu lado, segurando-o pelo pescoço, acusando-o de roubo e arrancando- da cadeira. Com horror, viu que debaixo das roupas do miserável rolou a cabeça de uma garota de catorze ou quinze anos, cuidadosamente separada do tronco. (…) A cabana foi cuidadosamente examinada e os restos mutilados da pobre garota encontrados. Em um barril estavam as pernas e quadris, parcialmente crus, e outra parte assados ou ensopados. Em um baú estava o coração, fígado e tripas, tudo preparado e limpo como se tivesse sido trabalhado por um açougueiro habilidoso.” (p.153-154).

A justificativa do mendigo seria a de que, tempos atrás, teria encontrado ruínas de uma taverna que havia sido incendiada, encontrando corpos. Dizia ele: “O aroma e a visão da carne assada inspiraram-no com o desejo incontrolável de prová-la. Ele cortou um pedaço da carcaça e saciou sua fome com ela.” (p.154-155)
Essa talvez seja uma justificativa plausível para um homem em desespero por comida – e uma boa trama para uma aventura em que se pode imaginar lobisomens, criaturas ou até rituais, coisas que não existiriam nesse contexto, mas sim apenas um mendingo faminto . A isso podemos comparar cenas épicas como a do jogo “Diablo”, da Blizzard, quando nos deparamos com o demônio “The Butcher” saindo de seu açougue humano e proferindo a frase: "Ah, fresh meat!" *

Aproveito que agora passamos a nos focar em estranhas formas de comida nos jogos de RPG, e passo a analisar as iguarias de monstros e/ou humanos canibais. Quero citar um trecho que mostra como se porta um monstro, como o Ciclope Polifemo, em uma “boquinha” saudável à base de carne, vinho e leite:

“e ele, de ânimo inexorável, sem proferir palavra, erguendo-se num impe|to, estendeu as mãos para meus companheiros, apanhou dois de umas ó vez e atirou-os or terra, como se fossem dois cachorrinhos; os miolos esparramaram-se pelo chão e molharam a terra; depois retalhou-os membros a membro e preparou a ceia. Comeu-os, como o leão, arriado na montanha, sem deixar coisa alguma, nem entranhas, nem carnes, nem os medulosos ossos. Nós, debulhados em lágrimas, perante espetáculo tão monstruoso, erguíamos as mãos a Zeus, sem saber que fazer. Depois de o Ciclope ter abarrotado sua volumosa pança com aquela carne humana e bebido, em cima, leite puro, estirou-se ao comprido no fundo do antro, no meio das ovelhas. (…) Após ter-se desempenhado da tarefa com presteza, agarrou ainda dois de meus companheiros, e preparou a ceia. Então, abeirando-me do Ciclope, com uma gamela de vinho tinto na mão, assim lhe falei: ´Ciclope, toma, bebe este vinho em cima da carne humana que comeste, para que saibas quão excelente era a bebida guardada em nossa nau. Trouxe-o para fazer uma libação, na esperança de que te compadecerias de mim e me deixarias partir para casa. Mas, cruel, tua fúria não conhece limites.” (Rapsódia IX p. 85-86)
(Homero. Odisséia / Homero; introdução e notas de Médéric Dufour e Jean Raison; tradução de Antõnio Pinto de Carvalho. Sâo Paulo: Abril Cultural, 1979.)

Finalizo então por onde comecei. Ao falar da iguaria de carne humana, talvez possa ter causado certo embrulho no estômago de alguns; mas devemos lembrar que somos seres feitos de carne, sujeitos a sermos também os porcos na bandeja com uma maçã na boca um dia! Finalizo com a descrição do banquete em Ivanhoé, como tira gosto desse humilde texto:

“a festa, entretanto, não necessitava das escusas do dono da casa. Na parte interior da mesa havia carne de porco, preparada de diversos modos, como também carne de veado, aves, cabrito e lebres, além de várias espécies de peixes, acompanhados de tortas de pão e compostas de mel e frutas. As aves miúdas, de que haviam abundância, não eram servidas em pratos, mas trazidas em pequenos espetos de madeira e oferecidas pelos pajens e criados aos convivas, sucessivamente, os quais cortavam os pedaços que quisessem. Ao lado de cada pessoa de categoria havia uma taça de prata; na mesa inferior, as bebidas eram tomadas em grandes copos de chifre.” (IV, p.48)
(SCOTT, Walter. Ivanhoé. 1ª edição. São paulo. Abril Cultural, 1972.)

Observei por meio desse artigo que o assunto culinária pode ser explorado, se bem analisado. A forma de se alimentar, como foi visto, faz parte da cultura de um povo ou de uma criatura; muda de uma região para outra e pode definir estados amistosos ou não, quando você for o alimento em potencial. Sugiro que pensemos mais sobre isso em nossos jogos. Talvez o que parece ser nada relevante, pode definir detalhes significativos de comportamento.

* The Butcher - O açogueiro/ Ah, fresh meat- Ah, carne fresca!
Agradecimentos: Alan Costa que revisou o texto e me deu ótimas dicas de como escrever bem.

Texto: Daniel Martins


Um comentário:

  1. Em tempo, peço desculpas pela bagunça na diagramação. Ao copiar o texto a configuração ficou meio doida.

    Sei que fica um pouco mais difícil de ler, mas o texto é legal e vale a pena.

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