Texto de Daniel Martins, publicado originalmente no blog "Mago Maligno".Reproduzido aqui com autorização do autor.
"Já
faz um tempo que mestro seções de RPG, e tenho um contato com esses jogos de
fantasia medieval; fiz várias observações até ter a ideia de escrever esse
texto, fazendo uma breve análise. No presente texto, resolvi abordar a questão
da alimentação nesses mundos medievais dos jogos e observei primeiramente quais
as principais influências na cultura dos games. Pude observar que muita coisa é
de origem Nórdica; desde o velho “Dungeons & Dragons” até jogos de
computador, como o recente “Skyrim: the Elder Scrolls V”. Entre a maioria dos
jogos de RPG ambientados em fantasia medieval, podemos ver que do mundo
medieval temos pouco; não arrisco falar em porcentagem, mas, certamente, mais
da metade do folclore é Nórdico, a outra parte se divide um pouco em Medieval e
outras culturas como a Greco-Romana. Notei que a abundância em alimentos nos
jogos se faz muito presente, algo que não seria a realidade dos Servos
medievais, mas em se tratando de fantasia, de um jogo criado, tudo é possível.
Mesmo assim procurei buscar literaturas que retratassem a época, para assim
justificar essa fartura em alimento presente em alguns jogos e livros, como o
próprio “Senhor dos Anéis” de Tolkien. Para começar, vamos pegar um trecho de
“Beowulf”, logo no primeiro banquete descrito:
“Havia
ali toda espécie de alimentos que a mente humana possa conceber. Destes,
sobrepujava a caça abundante, assada em gigantescas fogueiras erguidas a céu
aberto, onde haviam sido improvisados verdadeiros matadouros. Ali, os
cozinheiros, inteiramente despidos, chapinhavam furiosamente de lá para cá em
córregos de sangue, carregando nos ombros postas, quartos e até mesmo carcaças
inteiras para serem lançadas sobre as labaredas insaciáveis. Uma nuvem espessa,
produto do sangue e do sebo a escorrerem incessantes sobre as brasas chiantes,
envolvia homens e carcaças a ponto de quase fundi-los em inéditos e fantásticos
seres (…) Naquele dia, pois, muitos comeram e beberam até morrer – morte esta
que, para um nórdico autêntico, era a segunda melhor de todas as mortes.”
(capitulo 1 o salão do banquete p.16-17)
(Franchini,
A . S. Beowulf: recriação em prosa do poema medieval inglês / por A . S.
Franchini e Carmem Seganfredo, 2ª ed. - Porto Alegre, RS: Artes e Oficios,
2008.)
Quero
exemplificar com um texto ainda mais fiel ao original de sua época, uma vez que
os textos nórdicos foram feitos e refeitos várias vezes. O exemplo escolhido
foi um texto de um poeta e trovador francês, Chrétien de Troyes (1135-1191), um
dos primeiros a escrever romances de cavalaria, em determinado trecho de sua
obra “Perceval”, em que o mesmo personagem desfruta de uma cesta repleta de
iguarias alimentícias:
“É
verdade que jejuou tempo demais! Está morrendo de fome. Avista um barrilete de
vinho. Ao lado, uma taça de prata. Depois, sobre um feixe de junco, um
guardanapo branco e novo, Ergue-o. Encontra embaixo três belas tortas de carne
de cabrito, que não o podem desagradar. Por grande fome, eis que começa a comer
uma torta, que acha gostosa. Enche grandes copadas e as engole em largos
sorvos. O vinho não é dos piores!” (p.35)
(TROYES,
Chrétien de. Perceval ou O Romance do Graal; tradução de Rosemary Costhek
Abílio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.)
Lendário banquete Hobbit |
“Com
exceção do porco e das aves, o gado doméstico não era muito utilizado como
carne de corte. Mas os nobres, grandes comedores de carne, traziam de suas
expedições à floresta montanhas de perdizes, de galos selvagens, de lebres e
cabritos. O urso, o cervo e o javali abatidos eram transportados em triunfo, e
nas vésperas dos banquetes, as pequenas aves - codornas, tordos, ortolanos –
mortos às centenas, transbordavam das bolsas dos caçadores pelo chão das
cozinhas, em pilhas sangrentas e viscosas. Reinava nos castelos um cheiro de
sangue, de peles recém-escorchadas, de fumaça de carnes grelhadas misturas com
o cheiro dos cães, dos falcões de caça e dos homens. As carnes secas ao sol ou
defumadas em grandes chaminés não se conservavam bem, sendo necessário renovar
sempre as provisões. Havia | falta de sal e pimenta, indispensável para
prolongar a duração desses viveres, sempre ameaçados de apodrecimento, e também
para torná-los mais comestíveis.” (p.34-35)
(OLDENBOURG,
Zoé. As Cruzadas. Rio de janeiro. Editora Civilização Brasileira S.A. , 1968.)
Ainda
falando sobre o caso dos lobisomens em regiões de penúria e fome, posso citar
trechos que comprovam e explicam melhor lugares que se encontram nessas
condições. Essas situações podem servir em um jogo para a introdução de
lobisomens, uma trama que envolva apenas o canibalismo, ou ainda ataque de
lobos a uma região. Como exemplo, cito trechos do tratado de licantropia de
Sabine Baring Gould. Nesse primeiro exemplo, uma citação de como agiriam
lobisomens genuínos na idade média:
“Quando
uma habitação é encontrada isolada na floresta, as feras invadem-na
violentamente, arrebentando as portas, e quando o fazem, devoram todos os
humanos e todos os animais encontrados. Elas invadem as adegas, esvaziam os
barris de cerveja ou hidromel e empilham os caixotes vazios no meio da adega,
mostrando sua diferença entre os genuínos lobos naturais.” (p.43-44)
Agora
citando um trecho onde se fala no caso de canibalismo:
“Em
maio de 1849, o estalajadeiro de Polomyja perdeu alguns patos, e a suspeita
recaiu sobre o mendigo que ali morava, e de quem ele não gostava muito, visto
que era um homem trabalhador, enquanto Swiatek mantinha a si mesmo, esposa e
filhos por meio da mendicância. Embora tivesse suficiente quantidade de terras
aráveis que poderiam gerar uma excelente colheita de milho e produzir verduras
e legumes se aradas com cuidado (…) Conforme abriu a porta, viu que o mendigo
rapidamente escondia algo sob seus pés, embaixo das longas vestes. Em um
instante, o estalajadeiro estava a seu lado, segurando-o pelo pescoço,
acusando-o de roubo e arrancando- da cadeira. Com horror, viu que debaixo das
roupas do miserável rolou a cabeça de uma garota de catorze ou quinze anos,
cuidadosamente separada do tronco. (…) A cabana foi cuidadosamente examinada e
os restos mutilados da pobre garota encontrados. Em um barril estavam as pernas
e quadris, parcialmente crus, e outra parte assados ou ensopados. Em um baú
estava o coração, fígado e tripas, tudo preparado e limpo como se tivesse sido
trabalhado por um açougueiro habilidoso.” (p.153-154).
A
justificativa do mendigo seria a de que, tempos atrás, teria encontrado ruínas
de uma taverna que havia sido incendiada, encontrando corpos. Dizia ele: “O
aroma e a visão da carne assada inspiraram-no com o desejo incontrolável de
prová-la. Ele cortou um pedaço da carcaça e saciou sua fome com ela.”
(p.154-155)
Essa
talvez seja uma justificativa plausível para um homem em desespero por comida –
e uma boa trama para uma aventura em que se pode imaginar lobisomens, criaturas
ou até rituais, coisas que não existiriam nesse contexto, mas sim apenas um
mendingo faminto . A isso podemos comparar cenas épicas como a do jogo
“Diablo”, da Blizzard, quando nos deparamos com o demônio “The Butcher” saindo
de seu açougue humano e proferindo a frase: "Ah, fresh meat!" *
Aproveito que agora passamos a nos focar em estranhas formas de comida nos jogos de RPG, e passo a analisar as iguarias de monstros e/ou humanos canibais. Quero citar um trecho que mostra como se porta um monstro, como o Ciclope Polifemo, em uma “boquinha” saudável à base de carne, vinho e leite:
“e
ele, de ânimo inexorável, sem proferir palavra, erguendo-se num impe|to,
estendeu as mãos para meus companheiros, apanhou dois de umas ó vez e atirou-os
or terra, como se fossem dois cachorrinhos; os miolos esparramaram-se pelo chão
e molharam a terra; depois retalhou-os membros a membro e preparou a ceia.
Comeu-os, como o leão, arriado na montanha, sem deixar coisa alguma, nem
entranhas, nem carnes, nem os medulosos ossos. Nós, debulhados em lágrimas,
perante espetáculo tão monstruoso, erguíamos as mãos a Zeus, sem saber que
fazer. Depois de o Ciclope ter abarrotado sua volumosa pança com aquela carne
humana e bebido, em cima, leite puro, estirou-se ao comprido no fundo do antro,
no meio das ovelhas. (…) Após ter-se desempenhado da tarefa com presteza,
agarrou ainda dois de meus companheiros, e preparou a ceia. Então, abeirando-me
do Ciclope, com uma gamela de vinho tinto na mão, assim lhe falei: ´Ciclope,
toma, bebe este vinho em cima da carne humana que comeste, para que saibas quão
excelente era a bebida guardada em nossa nau. Trouxe-o para fazer uma libação,
na esperança de que te compadecerias de mim e me deixarias partir para casa.
Mas, cruel, tua fúria não conhece limites.” (Rapsódia IX p. 85-86)
(Homero.
Odisséia / Homero; introdução e notas de Médéric Dufour e Jean Raison; tradução
de Antõnio Pinto de Carvalho. Sâo Paulo: Abril Cultural, 1979.)
Finalizo
então por onde comecei. Ao falar da iguaria de carne humana, talvez possa ter
causado certo embrulho no estômago de alguns; mas devemos lembrar que somos
seres feitos de carne, sujeitos a sermos também os porcos na bandeja com uma
maçã na boca um dia! Finalizo com a descrição do banquete em Ivanhoé, como tira
gosto desse humilde texto:
“a
festa, entretanto, não necessitava das escusas do dono da casa. Na parte
interior da mesa havia carne de porco, preparada de diversos modos, como também
carne de veado, aves, cabrito e lebres, além de várias espécies de peixes,
acompanhados de tortas de pão e compostas de mel e frutas. As aves miúdas, de
que haviam abundância, não eram servidas em pratos, mas trazidas em pequenos
espetos de madeira e oferecidas pelos pajens e criados aos convivas,
sucessivamente, os quais cortavam os pedaços que quisessem. Ao lado de cada
pessoa de categoria havia uma taça de prata; na mesa inferior, as bebidas eram
tomadas em grandes copos de chifre.” (IV, p.48)
(SCOTT,
Walter. Ivanhoé. 1ª edição. São paulo. Abril Cultural, 1972.)
Observei
por meio desse artigo que o assunto culinária pode ser explorado, se bem
analisado. A forma de se alimentar, como foi visto, faz parte da cultura de um
povo ou de uma criatura; muda de uma região para outra e pode definir estados
amistosos ou não, quando você for o alimento em potencial. Sugiro que pensemos
mais sobre isso em nossos jogos. Talvez o que parece ser nada relevante, pode
definir detalhes significativos de comportamento.
* The Butcher - O açogueiro/ Ah, fresh meat- Ah, carne fresca! |
Agradecimentos: Alan Costa que revisou o texto e me deu ótimas dicas de como escrever bem.
Texto: Daniel Martins
Em tempo, peço desculpas pela bagunça na diagramação. Ao copiar o texto a configuração ficou meio doida.
ResponderExcluirSei que fica um pouco mais difícil de ler, mas o texto é legal e vale a pena.