quinta-feira, 22 de maio de 2014

Kuro: Terror em um Futuro Próximo

Para quem já leu minha resenha no blog Cybermagister (postagem ""KURO: TESTADO E APROVADO"), o texto que se segue é diferente daquele.
Só para avisar.
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Antes de tudo recomendo, para quem não viu, assistir esse vídeo introdutório:
Ele já passa um pouco do visual e do conteúdo do livro, e, espero, deve atiçar a curiosidade do pessoal.

Quando acabar de assistir, coloca esse, se quiser uma boa trilha para ler o texto a seguir:
Pronto? Então se acomode e vamos conversar.

Poucos RPGs me deram tanto prazer quanto KURO na leitura. Uns dois ou três me agradaram mais, mas não vem ao caso quais.

O fato é que a escolha da temática e do sistema de KURO são uma obra de arte e gostaria de defender meu ponto de vista dos porquês aqui (para uma analise mais tecnica, procure o link da cybermagister, acima).

-A ambientação política-social:
Tenho enorme afeição por jogos que lidam com problemas sociais de forma criativa. Sobre vários aspectos, o "Animal Social" de Kuro é um em que a "cabeça" (a elite) por dizer assim, se desenvolve em detrimento do restante do corpo.

A "Genocracia" é uma elite ultra-rica que pode dispor de tecnologias como clonagem, gravação de mente e transferência de consciência, se tornando não apenas uma oligarquia social transmitida de pai para filho, mas uma espécie de absolutismo orgânico, onde o poder não é mais dividido nem mesmo entre herdeiros potenciais desta riqueza.

Há um paradoxo de uma espécie de "Deus Ex Machina" presente nesse conceito que é um poderoso recurso narrativo. É por este ponto, aliás, que KURO me parece enamorar mais com o Transhumanismo do que com o Cyberpunk, em si (nada contra, as idéias evoluem, ainda que as mentes nem sempre o façam).

Sem perder o fôlego, o RPG mantém a estrutura clássica cyberpunk como possibilidade: Grandes corporações (Zaibatsus) estão ali para dar plots e gerar boas histórias, enquanto os jogadores podem fazer escolhas morais entre combater o sistema ou se prostituir com ele.

A temática ambiental, ainda que pouco explorada, é um elemento presente, assim como a gradual ausência de recursos que o país começa a sentir, criando bombas-relógio em campanhas se bem estruturadas. Elementos do mundo real, como os problemas com a usina de FUKUSHIMA são uma opção para detalhes importantes e podem trazer um pouco daquela sensação de estranheza/ reconhecimento que as melhores histórias fantásticas costumam trabalhar muito bem.

Um fator que me pegou muito bem foi o uso de tecnologia para personagens. Sou um dinossauro da "escola Cyberpunk 2020" e fico feliz com a prolífera opções de implantes que o sistema oferece. Exatamente por isso, quando leio um RPG de temática relacionada ao cyberpunk o que procuro não é uma outra lista de equipamentos, mas sim um uso mais criativo e surpreendente do uso de tecnologias "possíveis" mas ainda engatinhando e seu desdobramento social.

Essa extrapolação da tecnologia já existente e há RPGs extremamente bem pensados sobre"Eclipse Phase" ou, segundo elogios, "Interface Zero" fazem. Mas são RPGs ainda raros em um turbilhão de ambientações pouco iluminadas, e me agrada ver que KURO não caiu nessa armadilha.
isso, como o estupendo

Há 25 anos falar de "internet" e mundo virtual era quase mágico. Não tínhamos isso de fato, nem mesmo celular era um objeto comum, e qualquer idéia vindo disso era extremamente poderosa para a imaginação.. Hoje, o cyberpunk clássico tem um quê de retrô, com suas fitas de video-cassete e BBS. Para se conseguir o mesmo efeito potencial é preciso que novos paradigmas tecnológicos sejam trabalhados e o transhumanismo é uma boa resposta em vários sentidos.

Sobrenatural Com Gosto de Sushi: Por fim, me deixa muito satisfeito ver um conceito de sobrenatural bem trabalhado em um RPG tecnológico. Isso é raro de se conseguir. E, pessoalmente, acho que poucas ambientações são tão boas quanto o Japão para isso.

Historicamente, a religião Shinto, que cultua antepassados (e portanto sua identidade reside nas tradições e na memória), foi uma força poderosa na cultura japonesa. Equipada com uma série de conceitos sobre pureza e supertições diversas, a religião shinto tem uma enraizada visão de todas as coisas serem sagradas, terem certa conciência, e que espíritos diversos se fazem presentes em objetos e animais todo o tempo.

Não é a toa que "Ghost In The Shell", uma obra-prima do Cyberpunk, e "Akira", por exemplo,
resvalarem em temas como conciência, existência e corpo ao mesmo tempo como mundano e sagrado. Na visão cristã a carne é uma espécie de inimigo, um inimigo repleto de armadilhas para a alma. Já na visão oriental (me parece, não sou um especialista), o corpo é mais uma espécie de veículo, que evolui, transcende e ajuda a propria consciencia a se modificar e se metamorfosear junto. Se o pensamento ocidental se caracteriza pela oposição, pela dialética, tenho a impressão de que o pensamento oriental vai mais na caracterização de "movimento dinâmico".

Sou ateu, e não faço nenhum tipo de defesa metafísica. E acho que há espaço para diferentes formas de se pensar o mundo e nosso lugar nele. E a visão oriental é uma que merece seu espaço.

Dito tudo isso, o horror oriental, sobretudo japonês, é menos um terror de enfrentamento, e mais um de sobrevivência. Se o terror típico americano é "Maníacos de Facão na Floresta",  "O Chamado", na versão Japonesa ou na refilmagem americana. Essa pegada não é exclusiva do cinema japonês, vide Lovercraft, Clive Barker, etc, mas é bem característica ali.

E uma aventura de RPG em um ambiente de terror oriental é extremamente rico nesse caso. Porque os autores (salvo engano, franceses) poderiam, simplesmente, ter feito um RPG de ação disfarçado de terror. A tentação de se usar uma metralhadora contra um Kappa pode ser enorme, mas francamente, um fantasma de uma menina eternamente ensopada que deseja causar um mal "democrático" (até crianças podem ser alvo de sua maldade) dá uma história bem mais interessante.

A ressalva, aqui, é que o jogo traz mais armas mágicas do que eu gostaria. Há um certo risco de acontecer  o que acontecia em muitas mesas de Vampiro: se tornar, inadvertidamente, um RPG de "super-poderes" noturno. Mas a pegada da ambientação é bem direcionada para um clima de incertezas e medos e, se for bem trabalhada, é ainda mais assustador.

Tenho mais medo de filmes de terror à luz do dia do que de noite. E isso porque nos escuros sempre há aquela sensação de que "ao amanhecer tudo vai ficar bem". Mas em um terror na luz do dia não existe "alvorecer salvador para tostar  o Dracula se os personagens sobreviverem até lá". e saber que não há redenção ou salvamento no horizonte é mais desnorteador.

Por isso um terror em alta tecnologia, quando bem feito e estruturado, me agrada. Esqueça orcs cheios de implantes e bolas de fogo usadas como granadas. E dê boas-vindas a ONIs e KAMIS que ignoram totalmente sua uzi e fazem seu personagem cuspir moscas aos bilhões só de olhar para ele.

A defesa contra estas ameaças está (talvez no frágil andar de navalha entre a tradição cheirando a incenso e o futuro de neon.
Minha sugestão:
Esqueçam Robocop e pensem um pouco em GTS.
E talvez em Lain.

Brega Presley



2 comentários:

  1. Cara que maravilha... adorei a resenha... remete mesmo o terror de Kuro, acho q nao há ningiem melhor que o Brega para falar sobre temas cyberpunk... Parabéns.

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  2. Valeu Manjuba. tou empolgado com o treco.

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